MÚSICA

As transgressões musicais na cena techno de Porto Alegre

As relações entre música eletrônica, transexualidade e as festas da capital gaúcha

Pedro Pereira
Caleidoscópio

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DJ PV5000 tocando na festa eletrônica T escândalo | Foto: Lau Baldo (@laubldo)

Dia 31 de março é considerado o Dia Internacional da Visibilidade Trans, data que visa lançar luz sobre uma população que tem seu espaço de destaque negado, subjugado, roubado e ofuscado pela configuração da sociedade. No primeiro trimestre de 2023, completam também dois anos desde a morte da musicista, produtora musical e DJ escocesa Sophie Xeon. A artista transexual era um expoente da música eletrônica e foi fundamental para o processo de consolidação da PC music como subgênero. Sophie foi uma das primeiras pessoas trans indicadas ao Grammy, importante cerimônia de premiação nos Estados Unidos. O exemplo de Sophie mostra como as pessoas à margem sempre foram vanguarda, sobretudo na produção artística. Mulheres, negras, latino-americanas, transexuais — muitas vezes todas essas juntas, em um mesmo corpo, sem se anular — estiveram ativamente presentes na construção de movimentos musicais ao longo da história. O que ocorre, no entanto, é o constante apagamento do legado dessas figuras, que precisam lutar para serem reconhecidas.

Para grande parte da comunidade TLGBIA+, a pista de dança sempre foi um lugar possível para a construção de afetos e famílias. A noite efervescente evoca a possibilidade de tornar reais as fantasias violentadas cotidianamente, construindo um espaço de múltiplas expressividades não-conformistas. Muitas dessas festas, músicas e demais expressões artísticas que envolvem essa comunidade nascem de uma espécie de “hack” feito por pessoas inseridas no sistema social, na hierarquia de poderes operantes. “Essas vivências queer tem que acabar fazendo adaptações, gambiarras. Não tem exatamente como você viver no não heteronormativo, você tem que acabar adaptando esse sistema. Essa ideia de hackeamento é uma ideia de adaptação, de gambiarra.” Isso é o que diz Gilmar da Silva Montargil, mestrando em Comunicação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que aborda em seu trabalho conceitos como o de Hackeamento a partir da leitura de Jack Halberstam, professor titular do Departamento de Inglês e Literatura Comparada e do Instituto de Pesquisa sobre Mulheres, Gênero e Sexualidade na Universidade de Columbia.

As pistas transcentradas de Porto Alegre

Mas o que distingue a música eletrônica feita por pessoas trans das demais, em especial de homens brancos cisgêneros? “Eu acho que o lance de pessoas trans é hackear. Teu corpo tá hackeando o sistema. Tu tá te injetando uma parada, fazendo um experimento dentro do teu corpo, é tudo muito experimental o que tu tá vivendo. Então tua track (faixa de música) acaba sendo experimental. Tu vai ouvir o som de uma pessoa trans e é sempre algo pioneiro, pra frente, experimental”, argumenta Pétrus Vargas, 30 anos, também conhecido pelo nome artístico PV5000. Ele é DJ do coletivo de música eletrônica T, o qual ajudou a formar.

“Qualquer pessoa, a mais cis-heternormativa do mundo, ela vai achar muito foda. Porque a nossa festa não tem briga, todo mundo se respeita”, Pétrus Vargas (PV5000), DJ do coletivo de música eletrônica T

PV é também produtor da festa techno do coletivo: “A primeira vez que eu toquei fora foi em 2018, em Belo Horizonte. Quando toquei lá vi que a pista era muito mais animada, as pessoas se vestiam de uma forma colorida, as pessoas se beijavam na festa. Em Porto Alegre, era tudo meio travado, todo mundo muito heteronormativo, vestido de preto. Porto Alegre tem uma heteronormatividade nas entranhas, é bizarro.” Foi depois dessa viagem que PV resolveu produzir uma festa diferente das que aconteciam na capital gaúcha. “Eu voltei para Porto Alegre e pensei: chega dessa heteronormatividade que se comunica de diversas formas, desde a vestimenta até a música padrão e higienizada.”

Pista da festa eletrônica T escândalo | Foto: Lau Baldo (@laubldo)

PV ainda comenta que as primeiras referências trans que teve foram imagens de pessoas mortas, assassinadas muito cedo e que se encontravam muitas vezes em situações extremamente precárias. Já nas festas, passou a ver essas subjetividades em um lugar de potência, ganhando dinheiro com a sua arte, pois muitas performam ou atuam como DJ. As festas transcentradas (feitas por e para pessoas trans) criam um espaço que permite a indivíduos antes isolados se perceberem através de um grupo maior. Sobre esse espaço, PV ainda diz que mesmo quem é cisgênero se empolga com a experiência de ir a uma T (festa do coletivo), e ressalta a pluralidade do evento, que conta com a participação de distintos recortes sociais. “Qualquer pessoa, a mais cis-heternormativa do mundo, ela vai achar muito foda. Porque a nossa festa não tem briga, todo mundo se respeita… porque tu ser uma pessoa trans na noite, a gente pensa dez vezes mais que qualquer cis. A gente pensa em todos os detalhes. Por quê? Porque a gente é fudido, a gente se fode, a gente apanha, a gente sofre um monte de violência, só de andar na rua, então a gente vai pensar em tudo.”

No entanto, o DJ e produtor também comenta sobre a dificuldade de monetizar esse tipo de festa, visto que o evento se preocupa em incluir pessoas de distintas classes sociais, tendo que vender lotes de ingressos a baixo custo, além de contar com uma lista de entrada gratuita para pessoas trans. A não aposta, o descaso de grandes marcas com a T também é fator determinante para as dificuldades de monetização.

Da região metropolitana para o centro

Malka, 24 anos, morava em Campo Bom quando começou a frequentar festas eletrônicas em Porto Alegre. A participação em festas como a Base e a Arruaça, apesar de não serem exatamente transcentradas, possibilitaram à jovem vínculos que incentivaram sua mudança para Porto Alegre, há mais ou menos um ano e meio. O contato com outras pessoas trans na cidade e a possibilidade de trabalhar em locais “sendo quem é” também justificam a mudança.

Hoje Malka integra o coletivo Usina, onde também começou a tocar como DJ. Frequenta festas como a do coletivo Turmalina, do coletivo Bronx (bailes black), a Diesel e a T. “A maioria tem estes como únicos espaços onde pode experimentar, por exemplo, usar uma roupa que não poderia usar na sua vida, no trabalho ou em casa. Ou sair na rua daquele jeito por ter medo de alguma coisa acontecer. Então, durante a noite, a gente vive essa fantasia. Mas é uma fantasia que a gente gostaria que fosse a nossa realidade, né? Então acho que é um primeiro contato que a gente consegue ter com uma outra possibilidade de existência mesmo, imaginar novas formas de existir. É uma parte importante da gente se entender, né?”, reflete Malka.

O coletivo do qual Malka faz parte começou com a proposta de ocupar o espaço público. No entanto, a jovem relata as dificuldades burocráticas de ocupar a rua, citando as restrições de local e horário. A ocupação torna possível ressignificar a noite na rua, espaço-tempo comumente associado com a população trans em um contexto marginal, onde a prostituição aparenta ser a única saída possível, a única porta aberta. As festas trazem vida e múltiplas oportunidades às ruas da cidade. De certo modo, muitas dessas festas existem apesar das pressões e preconceitos impostos pela sociedade. Como uma gambiarra, as festas buscam adaptar o contexto em busca de frestas por onde possam existir. É esse “hack” que existe também na origem na música eletrônica, na utilização de samples e sintetizadores para a conjuração de uma nova música pelo DJ. Quanto mais frestas são abertas, mais cresce a esperança de que essas adaptações tomem conta da cidade, de que os holofotes se voltem para quem sempre teve a luz negada.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo da FABICO/UFRGS

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