SAÚDE

Construindo panoramas, derrubando paradigmas

Como a redução de danos cria novas possibilidades para usuários de drogas deixando de lado a estigmatização e o moralismo.

ana gonzalez
Caleidoscópio

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Bandeira arco-íris com os dizeres “manicômio nunca mais!” escritos em tinta preta. A bandeira está pendurada em uma parede branca acima de um quadro que contém um céu azul pintado e os dizeres “CAPS AD IV Céu Aberto” escritos em tinta azul e de uma bandeira do orgulho trans feita com canudos pintados de azul, rosa e branco colados em um pedaço de papelão.
A redução de danos apresenta novas possibilidades no tratamento de álcool e outras drogas | Foto: Ana Gonzalez

Ressignificação de vida. É assim que Carlos*, de 35 anos, define sua experiência com a redução de danos. Recebido com a indiferença e o estigma que perseguem os usuários de drogas em hospitais que realizam tratamentos convencionais contra o uso, Carlos viu na redução de danos uma possibilidade de ser recebido de braços abertos pelo acolhimento do qual precisava para lidar com o vício. “Foi um divisor de águas pra mim.”

Inclusa nas políticas dos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD) desde 2005, a redução de danos é uma política de saúde reconhecida por lei no Brasil que visa diminuir os malefícios causados pelo uso prejudicial de álcool e outras drogas. O tratamento do paciente, que ocorre de maneira longitudinal, é baseado na livre escolha e no vínculo entre usuário e profissional redutor de danos, que trabalham juntos para definir a melhor estratégia de ação. É o chamado Projeto Terapêutico Singular, que leva em consideração o contexto de vida do indivíduo e não engloba apenas condutas de saúde, mas também quaisquer atividades que possam desviar o foco das drogas e levá-lo para outras práticas que sejam positivas para a vida do paciente.

“Eu sempre digo que, se o futebol de quarta-feira faz bem para aquela pessoa, o futebol de quarta-feira vai estar no PTS”, diz Manuele Araldi, psicóloga do CAPS AD IV Centro Céu Aberto, em Porto Alegre. Ela explica que, no tratamento de álcool e outras drogas, o mais importante é que ele faça sentido para o usuário. “O que adianta é nós dois juntos, a pessoa trazendo a vida dela, o contexto, a história, o que ela quer pra ela própria, e nós, profissionais, trazendo o nosso conhecimento técnico, a nossa experiência profissional.”

Diferente de outros métodos de tratamento voltados para a dependência química, a redução de danos não coloca a abstinência total do paciente como sua meta principal. A melhora na qualidade de vida do indivíduo sempre deve ser a prioridade. “A ideia é que seja um instrumento pra essa pessoa construir uma outra possibilidade de vida, ficar bem — seja com drogas ou sem drogas”, diz Araldi.

Pelo direito de escolher

A visão comum que impulsiona a abstinência como mais importante meta no tratamento do vício em drogas, muito reforçada nos métodos mais convencionais de intervenção contra entorpecentes, é um dificultador para que muitos usuários deem continuidade ao tratamento após serem reinseridos em seus contextos de vida.

“A gente não acredita que a interrupção abrupta vai gerar uma pessoa abstinente. Muitas vezes, pode ser que ela volte a usar, que é o que a gente vê principalmente nas pessoas mais vulneráveis que são internadas e depois voltam pro mesmo contexto social de vulnerabilidade”, esclarece Maria Angelica Comis, psicóloga e coordenadora de advocacy do Centro de Convivência É de Lei, organização sem fins lucrativos que atua na redução de danos. Para ela, esse método pode ser um caminho para a abstinência, mas, acima de tudo, a estratégia respeita o direito individual, inclusive o de continuar a fazer o uso de drogas caso esse seja o desejo do indivíduo.

Antes de entrar em contato com a estratégia de redução de danos, Carlos já chegou a passar quase um mês internado no Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre, para tratamento de dependência química de cocaína. “Não adiantou nada, porque eu fiquei 21 dias dopado. O médico nem conversou comigo, só vinha a enfermeira e me dava remédio.”

Com o auxílio da redução de danos, Carlos já chegou a ficar 300 dias sem usar drogas. Através da visão construída com a ajuda da redução de danos, ele entende os eventuais percalços como parte natural do processo. “O negócio é tu ter a recaída mas tu voltar ligeiro pro tratamento, quanto mais cedo, e não tu ter a recaída e abandonar o tratamento.”

Além de uma visão mais positiva dos desafios que permeiam a dependência, Carlos descobriu, com o auxílio da redução de danos, uma nova paixão: a arte. A descoberta do gosto pela literatura e do talento para a poesia o ajudou a tirar o foco das drogas e abrir caminhos para novas possibilidades em sua vida. “É tu não colocar a droga em primeiro lugar, é tu tentar achar outra coisa pra colocar em primeiro lugar”, afirma. “Eu tenho uns 300 poemas já escritos.”

A luta contra o estigma e a falsa moral

Apesar de ser internacionalmente reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), ser política oficial em países como a Holanda e o Canadá e ter sua eficácia comprovada por diversos estudos, a redução de danos ainda enfrenta o estigma de ser encarada como um incentivo ao uso de drogas e uma não responsabilização do usuário.

“É necessário entender que a droga não passa por algo moral. Acho que é essa a chavinha que precisa mudar”, Maria Angelica Comis, psicóloga

Para Comis, isso se dá por conta do moralismo que permeia o debate acerca das drogas ilícitas e que pode ser prejudicial para o trabalho de redutores de danos e para a conscientização sobre o assunto. “O país se torna extremamente moralista, e aí qualquer coisa que aceite algo que é julgado moralmente é vista como imoral também”, diz, explicando, ainda, que a redução de danos trabalha também com a desestigmatização e a obtenção de direitos do usuário. “É necessário entender que a droga não passa por algo moral. Acho que é essa a chavinha que precisa mudar”, afirma.

Já para Araldi, uma chave para a mudança é a conscientização de que a redução de danos não se aplica apenas a usuários dependentes químicos. “A política que temos em relação ao álcool é uma forma de redução de danos, porque ela diz quem não pode beber, quando não pode beber. Tudo pra diminuir os riscos que o consumo de álcool pode causar”, afirma. “A redução de danos nada mais é do que isso: informar o sujeito pra que ele faça suas escolhas de vida e ofertar espaços de cuidado e tratamento pra quando este sujeito acaba se desorganizando”, completa.

Para aqueles que experienciam a redução de danos na prática, a estratégia tem se mostrado eficaz naquilo que se propõe: a ampliação da qualidade e das possibilidades de vida do usuário, quer ele abandone as drogas por completo ou não. Para Carlos, o apaixonado por literatura com 300 poemas escritos, a redução de danos significa o direito de sonhar alto: “Meu sonho é escrever um livro.”

*O nome foi alterado para preservar a identidade da fonte

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo da FABICO/UFRGS

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