INCLUSÃO

Incluir para avançar

Após 20 anos da Lei de Libras, veja como é a realidade da inclusão e acessibilidade de estudantes surdos nas principais universidades federais gaúchas

Sophia Goulart
Caleidoscópio

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A Libras é a segunda língua oficial do Brasil | Reprodução: Pexels

N o dia 24 de abril de 2002, a partir do decreto de lei nº 10.436, a Língua Brasileira de Sinais foi reconhecida como uma forma legítima de comunicação e expressão, tornando-se assim uma língua oficial do Brasil, e não mais uma linguagem. Duas décadas depois, a comunidade surda ainda visa conquistar e manter seus direitos, visto que a Língua Brasileira de Sinais não é sequer ensinada nas escolas do país, diferente da Língua Portuguesa. Um dos principais motivos que distância pessoas surdas do ambiente universitário é a barreira da língua.

“Essa é a principal dificuldade que a gente percebe com os estudantes surdos na educação superior, porque a língua portuguesa é considerada uma segunda língua. Existem estudantes que são fluentes na língua escrita, conseguem ler e escrever, mas há outros que tem uma dificuldade imensa de leitura e escrita.”, relata Fabiane Breitenbach, chefe da Subdivisão de Acessibilidade do Centro de Ações Educacionais (Caed) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Fabiane ainda aponta que a Lei de Libras tem um déficit. “Essa mesma lei vai dizer que a Libras não substitui a modalidade escrita. O estudante vai precisar realizar avaliações, relatórios e trabalhos escritos, ainda que essa escrita tenha critérios avaliativos diferentes, mesmo assim ele vai ter mais dificuldades nesse processo”.

Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), há apenas um estudante surdo que tem a Libras como sua língua principal. Henrique Teixeira Freitas, 21 anos, ingressou na universidade no primeiro semestre de 2021 por meio do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que é responsável por cerca de 57% dos ingressos de estudantes no ensino superior público. Ele não é o primeiro aluno surdo a ingressar na UFRGS, mas atualmente é o único que está realizando uma graduação na universidade, mais precisamente no curso de Direito.

“A prova do Enem tem bem mais acessibilidade do que o Vestibular da UFRGS, e existe um discurso da universidade de que tendo o intérprete já está resolvido, mas não é assim, porque os intérpretes não têm acesso prévio à prova para fazer a tradução pra Libras, somente na hora ele vê o conteúdo e isso é prejudicial tanto pro candidato quanto pro intérprete”, avalia. Henrique ainda conta que zerou a prova de literatura no Vestibular, mas no Enem foi muito bem nesta mesma matéria.

A de acessibilidade

O Incluir é o Núcleo de Inclusão e Acessibilidade da UFRGS. Por meio dele, diversos estudantes com algum tipo de deficiência são atendidos dentro das suas limitações, seja com o auxílio de um intérprete de libras, quanto por meio de matérias em braille, no caso de estudantes cegos. Adriana Arioli, coordenadora do Incluir, relata que, apesar do desejo, a acessibilidade no Vestibular não depende só deles. “Queremos que a prova seja traduzida, e não interpretada, pois para isso o intérprete precisaria se preparar antes. Ainda não conseguimos acertar isso com a Coperse (órgão responsável por elaborar o vestibular), mas um dia chegaremos lá.”

Adriana ainda acrescenta que, pela equipe de intérpretes ser reduzida — atualmente são oito profissionais –, não seria possível ter um intérprete para cada candidato surdo, portanto mais de um candidato precisaria ter o auxílio da mesma pessoa. “Esse ano teve somente uma candidata surda (no Vestibular) e, portanto, facilitou, mas, em outros concursos que têm mais de um candidato, é um problema, pois se ele precisar ir ao banheiro, então todos precisam esperar para o intérprete poder voltar a interpretar. Esses candidatos já saem em desvantagem desde o ingresso, não estão em igualdade de condições”, explica Adriana.

Diferente do vestibular da UFRGS, o Enem, desde 2017, passou a oferecer a sua prova pela modalidade de videogravação em Libras. A UFSM tem a sua forma de ingresso 100% pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu), mas, até 2016, também realizava seu vestibular com a opção de videogravação em Libras. Essa diferença na forma de ingresso tem resultados notáveis até hoje, pois, ao comparar com outras universidades federais do estado, a UFSM tem atualmente em seu quadro de estudantes de graduação oito alunos surdos.

Fonte: Núcleos de Inclusão e Diversidade das UF’s

Lucas Eduardo, 28 anos, é formado em Engenharia de Computação pela UFSM e ingressou na universidade em 2014, pelo vestibular com videogravação. Lucas é criterioso ao avaliar que a quantidade de intérpretes não é suficiente para atender as demandas de um número elevado de estudantes surdos em diversos setores, além de docentes também surdos que necessitam do mesmo auxílio “Na minha época, tinham em torno de 30 (alunos e professores) surdos. A qualidade da tradução ou interpretação era impactada negativamente, pois não tinha a possibilidade de manter dois intérpretes em aulas de longa duração, era somente um, independente da duração da aula”. Lucas ainda aponta que a alta demanda pelos intérpretes causa um impacto negativo na saúde física e mental, tanto do profissional quanto do aluno ou professor.

Além da libras

Laura Mello, 24 anos, é estudante da UFRGS, no curso de Publicidade e Propaganda. Diferente de Henrique, Laura não é usuária de Libras, mas também não é uma pessoa ouvinte. Laura tem deficiência auditiva moderada-severa e relata que, mesmo com o uso de seu aparelho auditivo, e, portanto, tendo a possibilidade de ouvir ao seu redor, além de realizar a leitura labial, ela ainda sofreu com a acessibilidade dentro da universidade. “Ingressei na UFRGS em 2018, no curso de Farmácia. Tive muita dificuldade, pois na época usava um aparelho que estava estragado, não ouvia sons, mas não me dava conta disso.” A estudante relata que, durante a pandemia, em 2020, teve problemas com uma disciplina que já estava repetindo pela quinta vez. “Era muito difícil, não só pelo conteúdo, mas pela questão da acessibilidade, e percebi que estava tendo dificuldades, pois, apesar do professor saber quem eu era e de ter entrado em contato com ele por e-mail, pedindo legenda nas aulas assíncronas, as aulas não haviam legenda. Reclamei, mas não mudou nada, somente quando o Incluir foi acionado é que ele legendou os vídeos, mas nesse momento já havia desistido.”

“Na Farmácia eu era a única pessoa com deficiência, me sentia ‘fora da caixinha’, mas aqui na Fabico tenho colegas que também tem alguma deficiência, e não me sinto só”, Laura Mello, estudante de Publicidade e Propaganda da UFRGS

Laura ingressou novamente na universidade em 2021, no curso de Publicidade e Propaganda, e desta vez se sentiu incluída no ambiente acadêmico “Na Farmácia eu era a única pessoa com deficiência, me sentia ‘fora da caixinha’, mas aqui na Fabico tenho colegas que também tem alguma deficiência, e não me sinto só. Nós lutamos por acessibilidade, percebo as dificuldades deles e as minhas, nunca encontrei falta de acessibilidade aqui na faculdade”, conta Laura.

Onde o surdo não se vê

Melissa Rossa, bolsista de apoio, e Vanize Flores, tradutora-intérprete de Libras, ambas do Núcleo de Inclusão e Diversidade (NID) da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), contam que não há, e nunca houve até então, um estudante surdo dentro da universidade. A instituição iniciou suas atividades em março de 1961 e é especializada nas áreas das ciências da saúde. Única intérprete na universidade, Vanize costuma prestar auxílio para o único professor surdo da instituição e lamenta que os estudantes surdos não se sintam acolhidos na área da saúde “Talvez porque até recentemente a surdez era considerada uma doença e isso distancie agora, ou também porque nas atuações da área da saúde o ‘ouvir’ é muito importante, seja no estetoscópio do médico, quanto no escutar o relato do paciente, sinto que o surdo não se sente acolhido dentro da área da saúde”, diz. Há, no entanto, estudantes com algum grau de deficiência auditiva dentro da universidade, mas Melissa aponta que dificilmente eles procuram o NID para pedir auxílio. “Um limitador que os distância é não saberem que dentro da universidade tem acolhimento, inclusão, núcleos de apoio”, completa Vanize.

Infográfico que ilustra, no decorrer dos séculos, diversas conquistas da comunidade surda no Brasil.

O desinteresse dos ouvintes

Apesar de todos os esforços empregados pelos núcleos de inclusão das universidades, não há como negar que só haverá mudanças significativas quando diversos setores da sociedade brasileira perceberem a importância de aprender a segunda língua oficial do Brasil: a Língua Brasileira de Sinais.

“Estou na UFRGS desde 2021, creio que já tive contato com 250 alunos, mas só conversei efetivamente com dois. A maioria dos meus colegas parece evitar falar comigo”, Henrique Teixeira, único estudante surdo da UFRGS

Tanto Henrique quanto Lucas relatam o desinteresse de seus colegas ou professores em aprender a língua que facilitaria a comunicação entre eles. “Eles sempre se colocavam à disposição para ajudar em algo, mas raramente percebia algum interesse deles em se comunicar em Libras”, diz Lucas. “Estou na UFRGS desde 2021, creio que já tive contato com 250 alunos, mas só conversei efetivamente com dois. A maioria dos meus colegas parece evitar falar comigo.”, conta Henrique. “Esse discurso todo mundo tem, de que a Libras é bonita, de que é legal, que quer aprender, mas Libras não é só bonita, é uma língua. Eu já indiquei que existe uma disciplina eletiva de Libras aqui na universidade, mas até agora não vi ninguém se inscrever”, diz.

Lucas também destaca a importância das políticas públicas. “Melhorar a acessibilidade, ter recursos necessários para realizar os estudos e trabalhos, informações necessárias sobre núcleos de inclusão, movimento estudantil, ter acesso a sessões psicológicas. Tudo isso pode ajudar a evitar o afastamento, o desempenho ruim do estudante, prejuízo de desenvolvimento profissional”, finaliza.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo da FABICO/UFRGS

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Sophia Goulart
Caleidoscópio

Estudante de Jornalismo em Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).