DIVERSIDADE

Mamãe, ela é igual a mim!”

O lançamento do live-action de “A Pequena Sereia”, estrelado por Halle Bailey, levanta debates sobre a importância da representatividade negra no cinema infantil

Larissa Lunge
Caleidoscópio

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“A Pequena Sereia” estreia em maio de 2023 | Divulgação: Disney

“Chique, princesa, bonitona, negra.” Foi assim que Melissa Barbosa, uma menina negra de 5 anos, descreveu a Ariel do live-action de “A Pequena Sereia”. O filme, que será lançado em maio deste ano, é baseado na clássica animação da Disney de 1989. Na adaptação, uma certa mudança surpreendeu os espectadores. A protagonista Ariel, que na animação era branca, de olhos azuis e cabelo liso, é interpretada por Halle Bailey, uma atriz negra, de olhos castanhos e cabelo crespo com dreadlocks.

O anúncio da escalação de Halle Bailey para o papel de Ariel, em julho de 2019, gerou grande repercussão nas redes sociais. Muitos espectadores criticaram a decisão da Disney, levantando a hashtag #NotMyAriel. Entre as críticas, houve comentários racistas e ofensas diretas à Halle. A mãe de Melissa, Francieli Cunha, de 29 anos, se recorda do momento em que viu o anúncio e os diversos comentários preconceituosos nas redes sociais. “É muito pesado, porque tu fica com uma sensação de que ‘bah! não mudou nada, olha o que as pessoas falam!’” Francieli viu tantas críticas, que chegou a se questionar se a Disney realmente manteria o lançamento do filme.

A atriz Halle Bailey interpreta a Ariel no live-action de “A Pequena Sereia” | Divulgação: Disney

Por outro lado, muitas pessoas defenderam a escalação de Halle, ressaltando a importância da diversidade e da representatividade para os filmes infantis. Essas questões voltaram a ser debatidas em setembro de 2022, quando o trailer de “A Pequena Sereia” foi lançado na D23 Expo, evento organizado pela Disney. Pouco depois, diversos vídeos circularam na internet, mostrando a reação de crianças negras ao verem o trailer pela primeira vez. Surpresas, felizes e emocionadas, elas comemoraram que a nova Ariel tem a mesma cor delas. De forma similar, Melissa afirmou gostar muito da personagem por ser parecida com ela.

Quando a pesquisadora de comunicação e infância Renata Tomaz assistiu aos vídeos das crianças, lembrou de uma experiência que teve com seu filho. O menino tinha ido assistir à animação “A Casa” e o que ele relatou ter mais gostado foi que os protagonistas eram negros como ele. “Ele se viu naquela personagem, isso chamou a atenção dele e isso eclipsou o resto.” Essa situação, assim como a das meninas reagindo ao trailer, demonstra o quanto é importante para a criança se ver nas mídias e enxergar o seu grupo, as suas características e a sua cultura.

Lacunas na representatividade

De acordo com Renata, que está fazendo pós-doutorado na Universidade Federal Fluminense (UFF), quando as crianças negras se veem nas mídias, elas reagem. Bem diferente do que acontece quando meninas e meninos brancos se veem. “Uma criança branca chegar e falar ‘achei interessante, porque eles são brancos como a gente’ não faz o menor sentido, porque ela tá vendo gente igual a ela o tempo todo”, observa Renata. Portanto, a pesquisadora percebe que ainda há falta de representatividade negra nas mídias. Afinal, se as crianças negras se sentem impactadas ao verem personagens negros, é porque ainda não é algo tão corriqueiro.

Essa ausência é percebida por Melissa. Ela conta que gostaria de ver mais personagens negros nos conteúdos que assiste. “Tem que ter a mesma quantidade de branco, a mesma quantidade de negro”, diz. A fala da menina denota que ela gostaria que a mídia fosse um pouco mais parecida com a realidade, afinal, 56% da população brasileira é negra, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Sua mãe, Francieli, também percebe essa ausência. Ela repara que há um esforço para aumentar a representatividade, mas que, se for contada a quantidade de negros presentes nas mídias, ainda é pouco. Na sua percepção, bons exemplos de representatividade, como o filme do Pantera Negra, ainda são minoria. Na maioria dos produtos midiáticos, o que existe é uma espécie de “cota de negro”, o que está bem longe de ser uma grande representatividade. “Nos ‘Descendentes’, que a Melissa assistiu todos os filmes, são duas meninas negras, mas o filme inteiro tem umas 100 pessoas, então não é misto”, explica a mãe da menina.

Renata concorda que existe um aumento percentual da representatividade negra se comparada a geração atual com as passadas. E que essa mudança é resultado não de uma boa vontade da mídia, mas de uma pressão dos movimentos sociais. Porém, a pesquisadora ressalta que, à medida que este movimento avança, é possível perceber o quanto ainda falta evoluir. “Você vai andando, você consegue ver no horizonte onde você pode chegar; mas quanto mais você anda, embora você se aproxime daquele lugar que você viu inicialmente, você descobre que tem outros.” Ilustrando seu argumento, Renata, que é uma das fundadoras da Rede de Pesquisa em Comunicação, Infâncias e Adolescências (Recria), complementa: “Você aumenta a representatividade, por exemplo, de atores negros, mas aí você fala ‘mas não tem protagonista’; aí você avança e oferece protagonista; daí você descobre que ‘putz, mas olha o diretor, o roteirista, a trilha sonora, quem pensa esse filme não é negro’”. Na percepção da pesquisadora, quando a Disney cria uma Ariel Negra, por exemplo, a sociedade não pode achar que o problema da representatividade está resolvido. Pelo contrário, esses exemplos apontam para as lacunas de representatividade que ainda existem nas mídias, e a necessidade de o movimento continuar avançando e trazendo mais negros para a frente e para trás das câmeras.

Afinal, por que a representatividade é tão importante?

Para Renata, a representatividade é importante para a socialização da criança, para que ela compreenda que pode ocupar espaços. “Quando você não se vê ou não vê pessoas iguais a você ocupando determinados espaços, você tende a acreditar que aquele espaço não é para você, ou que ele poderia ter algum tipo de hostilidade a você”, explica.

Francieli apresenta uma percepção parecida sobre o papel da representatividade: “Para que tu vai representar uma Ariel ou fazer um personagem ou super-herói negro? Para mostrar para a pessoa negra que ela pode ser o que ela quiser ser”. Na sua visão, isso fortalece o indivíduo, aumentando sua autoconfiança. Francieli percebe que Melissa é muito mais segura de si hoje do que ela era quando tinha a mesma idade. E isso ela atribui à criação da família, mas também à mudança de postura da mídia. Francieli acredita que a mídia impacta em como o indivíduo se vê, como um “espelho”. Portanto, a representatividade tem o potencial de ensinar a criança “a se amar pelo que ela é”.

Melissa Barbosa, de 5 anos, com alguns de seus bonecos preferidos | Foto: Larissa Lunge

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo da FABICO/UFRGS

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