DISCRIMINAÇÃO

Na minha casa, não

Os clubes devem se responsabilizar pelos casos de racismo em seus estádios

Mateus Rocha da Silva
Caleidoscópio

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Ocorrências nos estádios seguem aumentando | Reprodução: Tope A. Asokere/Pexels

“Macaco, macaco’’, a mão erguida ao lado da boca escancarava o esforço da torcedora em ser ouvida pelo goleiro Aranha, a época no Santos. Ela foi condenada unanimemente pelo Brasil em 2014, em grande parte graças às imagens que não deixavam sombra de dúvida sobre as acusações do goleiro. Mas, mesmo com toda a repercussão negativa, o clube gaúcho se recusava a aceitar a pena que julgava ser muito pesada. Fábio Koff, presidente do Grêmio na época, caracterizou a decisão como exagerada e disse à imprensa que, se isso acabasse com a injúria racial no Brasil, o Grêmio cumpriria a pena de eliminação na Copa do Brasil daquele ano feliz. Por fim a decisão foi alterada. Ao invés de ser excluído diretamente da competição, o time perdeu três pontos referentes à segunda partida entre as equipes e que nunca foi disputada. Essa perda de pontos acarretou na eliminação da equipe na competição, já que o primeiro jogo havia terminado em 2x0 para a equipe santista. Além disso, foi aplicada uma multa no valor de 54 mil reais.

De fato, o racismo não acabou nos estádios pelo Brasil. No entanto, muita coisa mudou. Com a repercussão do caso, a Geral do Grêmio, famosa torcida organizada do time, aboliu oficialmente o uso do termo historicamente utilizado para hostilizar o principal rival, o Internacional, e que foi usado para ofender o goleiro Aranha. Apesar de ainda serem cada vez mais frequentes os casos de racismo nos estádios, são também mais frequentes, apesar de escassas, as punições, ao menos no âmbito desportivo. Até o ano de 2014, Infelizmente não haviam registros organizados e de fácil acesso dos casos de racismo ocorridos no Brasil no âmbito esportivo. Motivo que levou Marcelo Medeiros Carvalho à idealização do Observatório da Discriminação Racial no Futebol.

Segundo Marcelo, que é formado em gestão de marketing, a ideia surgiu depois dos casos envolvendo Márcio Chagas, Arouca e Tinga, todos ocorridos em 2014, mas anteriores ao caso Aranha. “Se discutia muito se esses casos eram pontuais ou se eram frequentes no futebol. Aí eu fui pesquisar quão frequentes eram e não encontrei essa informação’’, conta. Marcelo é diretor do Observatório e administrador de empresas e, ao perceber a dificuldade de achar esses dados, resolveu fazer um relatório onde descreveria os casos de racismo no futebol brasileiro e acompanharia o desenrolar destes. O Observatório começou de forma independente, tendo seu primeiro relatório elaborado apenas por seus idealizadores, Marcelo e Débora Manera.

Desde 2015, a instituição mantém uma parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) para elaboração dos relatórios e hoje é uma das mais atuantes no combate ao racismo no âmbito desportivo no Brasil. O Observatório conta com parcerias frequentes com mais de doze clubes das Séries A e B do Campeonato Brasileiro. Através dele, é possível observar um aumento contínuo nas ocorrências desses crimes no futebol brasileiro, com exceção do ano de 2016 e dos anos em que o calendário foi afetado pela pandemia em 2020 e 2021. Este último teve crescimento em relação a 2020, mas uma baixa em relação a 2019, último ano que teve seu calendário inalterado.

O estado com mais casos de racismo no País

Chama a atenção nesses dados que o Rio Grande do Sul é o estado com o maior número de casos registrados em seus estádios, 54 desde 2014, com mais que o dobro dos casos de São Paulo, segundo colocado com 25 casos.

Esses números apontam para uma urgente necessidade de atitudes mais severas das instituições responsáveis pela regulamentação do futebol no estado: o Tribunal de Justiça Desportiva do Rio Grande do Sul e a Federação Gaúcha de Futebol. E também dos maiores beneficiados com a realização desses campeonatos, que obtém lucros na casa das centenas de milhões todos os anos: os principais clubes de futebol do estado. Embora eles tenham algumas iniciativas no combate ao racismo, a quantidade de casos continua a aumentar, o que mostra que as ações são insuficientes.

Além de o Rio Grande do Sul contar com o maior número de casos, foi local dos dois acontecimentos mais famosos já ocorridos no país. Um é o caso já citado do Jogador Aranha e outro, do ex-árbitro, ex-comentarista e militante antirracista Márcio Chagas. Em 2014, em partida disputada pelo Gauchão entre Esportivo e Veranópolis no estádio Montanha dos Vinhedos, em Bento Gonçalves, Márcio foi vítima de inúmeras ofensas de cunho racista durante a partida perdida pelo time da casa. Ao chegar ao estacionamento de acesso restrito a funcionários do clube e à equipe de arbitragem onde se localizava seu carro, Márcio se deparou com o veículo depredado e com cascas de bananas colocadas sobre a lataria. Ao tentar dar a partida, três bananas caíram do escapamento. Após o ocorrido, Márcio ainda foi vítima de inúmeras ameaças nas redes sociais e ainda recebeu ligação do presidente da Federação Gaúcha de Futebol cobrando o porquê de, ao invés de denunciar, não havia contatado o presidente para que este resolvesse o problema sem a necessidade de intermédio da imprensa.

“precisamos de pessoas pretas também na diretorias dos clubes’’ , Márcio Chagas, ativista antirracista

O ocorrido foi fator determinante na aposentadoria da arbitragem de Márcio de forma precoce, aos 37 anos. Após se aposentar, foi comentarista da RBS de 2014 a 2019. Segundo Márcio, seu desligamento da emissora de TV se deu devido ao fato de ele falar sobre questões de discriminação racial. Apesar de tudo, Márcio, que tem se dedicado cada vez mais ao ativismo antirracista, acredita que vem ocorrendo marcos importantes na luta por um futebol menos discriminatório. ‘’A eleição do Ednaldo (à presidência da Confederação Brasileira de Futebol) é um marco importantíssimo na luta antirracista, mas precisamos de pessoas pretas também na diretorias dos clubes’’, afirma.

A responsabilidade dos clubes

Se uma pessoa entra num shopping e chama alguém de macaco, o shopping não pode ser responsabilizado. Agora, se isso acontece reiteradamente, o shopping tem que ser responsabilizado’’, exemplifica Bruno Teixeira, jornalista da CBN e frequentador assíduo dos estádios no Rio Grande do Sul. Isso é o que ocorre nos estádios há anos. Os clubes que têm ocorrências de racismo em seus estádios tentam de alguma forma individualizar os casos, colocando a culpa num único indivíduo. “Parece que, cada vez que há um novo caso de racismo, a sociedade trata como se fosse o primeiro’’, diz Marcelo. Essa tentativa de individualização é usada como escudo pelos clubes na tentativa de fugir de suas responsabilidades.

Foi exatamente isso que ocorreu no caso emblemático do goleiro Aranha. Está gravado na memória de todos a imagem da menina aos brados. No entanto, o próprio goleiro afirmou em entrevista pós-jogo que escutou um coro de torcedores gritando ofensas racistas. E, ainda mais revelador, é o que relata o jornalista Bruno, que estava neste mesmo jogo como torcedor. “Antes disso acontecer, eu já tinha ouvido no meio da galera chamarem o Arouca de preto sem vergonha, macaco, coisas assim”, afirma. Esses xingamentos ao volante santista não renderam sequer uma linha nas grandes publicações da época.

Bruno afirma que viu isso ocorrer muitas vezes em outras partidas com diferentes jogadores. o jornalista acredita que as instituições costumam tentar evitar que ocorram novos casos somente para não serem punidos e não para realmente resolver o problema. Bruno defende as punições a quem pratica racismo, mas lembra que o motivo não pode ser o medo dos clubes de pagarem multas. “É porque não pode, é porque tá errado’’, diz. Falta também, na sua opinião, os clubes admitirem que isso é um problema de larga escala, que ocorre com frequência, e, a partir daí, realizarem trabalhos de conscientização com suas torcidas.

Algo que é marcante nesses casos é como o estádio acaba sendo um refúgio para que pessoas mal intencionadas possam destilar seu ódio a céu aberto sem que sofram consequências por isso. Uma exceção foi o caso ocorrido no Bento Freitas, em Pelotas, onde um torcedor apareceu com uma tatuagem com os “Mein Kampf’’, em clara alusão ao nazismo. Nesse dia, o homem foi retirado pelos torcedores presentes na arquibancada. Nessa situação, o preconceito foi inaceitável para quem estava no jogo.

No entanto, há diversos níveis de percepção sobre o que é inaceitável e mesmo sobre o que é racismo. É aí que Marcelo vê um espaço para os clubes assumirem a tarefa de conscientização de seus torcedores: “Às vezes não é tão claro, por exemplo, quando há uma ofensa com relação ao cabelo do jogador”. Para Marcelo, campanhas focadas em explicar os modos diferentes em que se pode incorrer numa atitude racista, até mesmo sem perceber, podem ser importantes aliados nesse combate.

É como diz o ex-jogador de futebol francês Lilian Thuram na frase que abre o último relatório do Observatório da Discriminação Racial no Futebol: “Os clubes devem se sentir responsáveis pelo que acontece, porque certos episódios ocorrem dentro de um espaço fechado ou de um estádio. E, quando digo ‘responsável’, não quero dizer ‘culpado’. Somos responsáveis. O que podemos fazer?’’. Enquanto os clubes se esforçam na tentativa de negar o seu papel como instituição social no combate ao racismo, os grandes protagonistas do esporte seguem sofrendo com os males de uma sociedade que insiste em manter velhos costumes. E que encontra nos estádios de futebol um local seguro para expelir seu ódio, um local onde reina a impunidade e a condescendência.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo da FABICO/UFRGS

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