PRECONCEITO

O árabe pelas lentes do Ocidente

Como as diferentes formas de mídia atuam na construção da discriminação contra pessoas de origem árabe

Miguel Waquil Campana
Caleidoscópio

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O cinema, como instituição midiática, contribui para a vilanização dos países árabes | Arte: Pixabay

E m janeiro deste ano, em uma fila da estação de trem da cidade inglesa de Birmingham, o kuaitiano Mostafa Sadeq, 21 anos, estudante de Engenharia Elétrica na Universidade de Liverpool, esperava seu trem para Londres. A passagem, comprada on-line, tinha um Código QR para ser escaneado. Quando chegou a vez de Mostafa na fila, a segurança do trem se recusou a escanear o código dele e o acusou de falsificar o ticket. Mostafa teria sido obrigado a comprar uma nova passagem e voltar para o final da fila, não tivesse sido apoiado pelas outras pessoas que estavam ali. A segurança foi convencida a escanear o Código QR de Mostafa, e o estudante conseguiu entrar no trem a tempo de partir para a capital britânica.

“Como foi a primeira vez que passei por esse tipo de situação, fiquei muito surpreso e, ao mesmo tempo, frustrado. Era uma coisa que eu só via em filmes ou noticiários, e aconteceu comigo”, comenta Mostafa. Esse caso não pode ser pensado como uma confusão qualquer em uma estação de trem. Dos que estavam na fila, ele foi o único a passar pelo desconforto e constrangimento de ser acusado de falsificação. Também era o único árabe na fila. Mostafa foi julgado pelo simples fato de ser árabe.

A mídia como fomentadora desse preconceito

Devido à grande visibilidade contemporânea e credibilidade atribuída às instituições midiáticas ocidentais, o público constrói conhecimento e forma opinião a partir daquilo que consome. No caso do preconceito contra pessoas de origem árabe, a doutora na área de Economia da Cultura pela Universidade Erasmus Rotterdam Carolina Chiesa acredita que a mídia tem um papel muito relevante na constante construção dessa discriminação. Segundo ela, as instituições midiáticas cristalizam e tornam mais evidentes algumas noções que as pessoas culturalmente têm sobre os povos árabes.

De um ponto de vista histórico, pessoas de origem árabe são frequentemente associadas ao terrorismo. Para a presidente da Sociedade Árabe-Palestina da Grande Porto Alegre, Maysar Hassan, a possibilidade de escolha dos termos que serão utilizados, por exemplo, na construção de uma notícia abre espaço para a estigmatização das pessoas de origem árabe. “Quando um estudante nos Estados Unidos entra numa escola e atira em todos os colegas, ele não é classificado como terrorista, mas como uma pessoa desequilibrada. Agora, se alguma pessoa de origem árabe faz algo parecido, ela é sim taxada de terrorista pela mídia”, comenta Maysar.

A imagem de uma pessoa de origem árabe também é estereotipada por outra forma de mídia, o cinema ocidental. No texto Orientalismo, Edward Said fala sobre como o árabe é exotizado, ou seja, tratado como um indivíduo que não pertence ao Ocidente. Um bom exemplo disso pode ser visto na música de abertura do filme Aladdin (1992), um dos contos da coletânea Mil e uma noites, mencionada no texto de Said. Em um trecho, a terra de origem dos árabes é retratada como um lugar violento, bárbaro e não-civilizado, se comparado aos países ocidentais:

“Oh, eu venho de uma terra, de um lugar distante, onde os camelos da caravana vagam, onde cortam sua orelha se não gostam do seu rosto. Como é bárbaro o nosso lar.”

Os protestos do Comitê Árabe-Americano Anti-Discriminação seguintes às primeiras exibições de Aladdin fizeram com que a Walt Disney Studios mudasse o trecho citado anteriormente da música. Na versão revisada, as últimas três linhas foram substituídas por: “É uma imensidão, um calor e exaustão, como é bárbaro o nosso lar”. No entanto, o presidente da filial do comitê em Los Angeles, Don Bustany, declarou na época que a pequena alteração na música não era suficiente para reverter o racismo retratado no filme.

Em 2015, o comitê também acusou o filme Sniper Americano, estrelado por Bradley Cooper, de propagar e direcionar ódio aos árabes e muçulmanos norte-americanos. Segundo membros do grupo, o filme glorifica a Guerra do Iraque e limpa a representação do franco-atirador norte-americano Chris Kyle, responsável por 160 mortes no conflito no Oriente Médio. O presidente nacional do comitê, Samer Khalaf, disse que um possível boicote ao filme só faria as pessoas quererem mais ainda assisti-lo.

Essa equivocada representação da vida nos países árabes reflete na forma como eles são vistos por quem não vive lá. A pesquisadora Carolina conta que, quando decidiu realizar um intercâmbio no Omã, país na Península Arábica, para aprofundar sua pesquisa sobre a cultura árabe, ouviu muitos comentários receosos. “As pessoas ficaram um pouco chocadas, perguntando aonde que eu estava indo e me metendo. Por falta de informação, elas não sabem que a vida lá é tão normal quanto em qualquer outro lugar.”

É bem verdade que alguns países árabes apresentam contradições. Durante a Copa do Mundo de 2022, o jornalista americano Grant Wahl foi impedido de entrar em um estádio por usar uma camisa com a estampa de um arco-íris, em apoio à população LGBTQIA+. A desigualdade de gênero nos países árabes também chama a atenção dos países ocidentais. Apesar disso, Carolina acredita que, por não haver informação suficiente, as pessoas também têm concepções muito erradas sobre a vida nesses países. “Pensa-se que os países árabes são menos civilizados e menos modernos do que os países ocidentais, o que não é o caso. Alguns preconceitos existem, mas outros são completamente exagerados.”

O que o Ocidente não vê

Enquanto os países árabes são midiaticamente construídos como lugares inabitáveis e violentos e a cultura árabe, como retrógrada e não moderna, não são atribuídos aos povos árabes diversos avanços da humanidade trazidos por eles. “É bastante surpreendente que as sociedades ocidentais modernas atuais não se deem conta de que boa parte do conhecimento que elas têm é derivado de um esforço desses povos em fazê-los evidentes”, lembra Carolina.

A pesquisadora explica que a migração árabe aos países ocidentais resultou na criação de universidades e na realização de obras públicas, além de proporcionar progressos na matemática, na astronomia e na tradução de livros gregos para as línguas locais. “Sem os árabes, os países ocidentais não conheceriam Sócrates.” Também não conheceriam os números indo-arábicos (0 ao 9), tão usados hoje em dia. Isso porque eles foram levados ao Ocidente por um árabe, Abu Ja’far Muhammad ibn Musa al-Khwarizmi, mais conhecido como Al-Khuarismi. Inclusive, o nome desse matemático deu origem à palavra algarismo. As contribuições dos árabes são inúmeras, mesmo que o Ocidente não tenha noção disso.

Para Carolina, é muito difícil, a curto prazo, reverter um preconceito tão engrenado na sociedade e alimentado pelas diferentes formas de mídia como aquele contra pessoas de origem árabe. “A construção desse preconceito é um caminho sem volta, pelo menos por enquanto.”

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo da FABICO/UFRGS

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