ESPORTE

País do futebol?

O desgaste na relação entre a Seleção Brasileira e o povo

Gabriel de Miranda Margonar
Caleidoscópio

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Símbolos nacionais agora se confundem com manifestações políticas | Foto: Joel Santos/Pexels

S eleção Brasileira de Futebol: cinco Copas do Mundo, duas medalhas de ouro olímpicas, ídolos do futebol mundial, a maior seleção do mundo.

Brasil: terra de Pelé e Marta, onde 29,6% da população está abaixo da linha da pobreza e o sonho de ascensão social de milhões de crianças e adolescentes está nas quadras de futebol espalhadas pelo país, aliás, o “País do Futebol”.

Desde sua formação, a Seleção Brasileira e o povo parecem ter vivido um casamento quase perfeito. Porém, nos últimos anos, a história está diferente: num país polarizado, com inúmeras questões políticas e sociais a serem resolvidas, o brasileiro parece estar afastado da seleção como nunca.

Vem divórcio aí?

Símbolo da cultura do país e parte importante do cotidiano do brasileiro, o futebol, principalmente por meio da Seleção Brasileira de Futebol, se tornou fundamental para o sentimento de nação e para o resgaste da autoestima do cidadão brasileiro. Um povo tão sofrido encontrara finalmente algo em que era realmente bom, e unia-se por uma causa: ligar a TV ou o rádio para testemunhar o seu país derrotando as nações de primeiro mundo e se consolidando como o melhor em algo.

Porém, atualmente essa realidade se transformou: a Seleção Brasileira não gera mais tanta comoção popular, acumula fracassos — o que inclui um 7x1 em casa — e não parece ter o carisma de outrora para seduzir as novas gerações. Além disso, com a globalização, vem surgindo uma geração que também torce por outros países e, por vezes, se encanta mais com outros esportes.

O (des)interesse na Copa do Mundo

Em agosto de 2022, o Instituto Datafolha publicou sua tradicional pesquisa sobre o interesse da população brasileira na Copa do Mundo e, apontou que apenas 22% dos brasileiros tinham grande interesse no torneio, enquanto 51% afirmavam não possuir nenhum tipo de interesse. Analisando de forma mais ampla, percebe-se uma queda sucessiva no interesse público em Copas do Mundo no Brasil entre o ano de 1994 até 2018, quando os números ficaram bem próximos dos resultados de 2022.

Fonte: Instituto Datafolha/ Folha de S. Paulo

E quais os motivos?

“O torcedor brasileiro é apaixonado por vencer e não pelo esporte em si. Quando adquirimos nossa fama, estávamos vencendo, tínhamos Pelé, Garrincha e diversos outros craques, era mais interessante se mobilizar e se identificar com uma seleção multicampeã”, Sergio Xavier Filho

Para Miguel Enrique Stedile, doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autor de diversos livros sobre futebol, há um desgaste na relação da população com a seleção que é gradual e vem se acumulando por uma série de fatores desde 2006: “Lembremos do ‘quadrado mágico’ de Parreira naquela Copa e o sentimento de que tínhamos o melhor time, mas perdemos pela falta de comprometimento dos ‘atletas-celebridades’. Depois, a frustração do 7 a 1 se confundiu com os sentimentos das manifestações (políticas) do ano anterior e o processo de apropriação das camisas da seleção que culminou em 2016 (com o impeachment da presidente Dilma Rousseff) e depois no bolsonarismo”.

O pesquisador ainda afirma que, nos últimos anos, o fenômeno da globalização, aliado à mercantilização do futebol, tem se acentuado e, com isso, cada vez mais cedo os jogadores estão deixando o Brasil sem construir relações com seus clubes de origem e consequentemente com os torcedores. Ao mesmo tempo esses atletas adquirem padrões de vida e de consumo cada vez mais anormais em relação à população, fazendo com que haja um afastamento natural do jogador com o “povão”.

Já Sérgio Xavier Filho, comentarista esportivo do canal de TV por assinatura Sportv, identifica nesse desinteresse uma relação direta com a falta de conquistas recentes da seleção: “O Brasil não vence uma Copa do Mundo desde 2002 e nos últimos 50 anos venceu apenas duas Copas, o que naturalmente gera um ponto de desconfiança da torcida em relação a seleção”. O jornalista destaca que o Brasil tem a fama de ser o país do futebol, mas que na prática não é exatamente isso que ocorre. “O torcedor brasileiro é apaixonado por vencer e não pelo esporte em si. Quando adquirimos nossa fama, estávamos vencendo, tínhamos Pelé, Garrincha e diversos outros craques, era mais interessante se mobilizar e se identificar com uma seleção multicampeã.”

O sequestro da amarelinha

Protestos pró intervenção federal, em 2022 | Foto: Geancarlo Peruzzolo/Pexels

A polarização política no Brasil também acabou interferindo na identificação de grande parte da população com a seleção, e uma das principais vítimas foram os símbolos nacionais, como a bandeira e, principalmente, a tradicional camisa amarela. Desde 2014 associada a grupos políticos de direita, principalmente ao bolsonarismo, a amarelinha parece já não representar todos os brasileiros, gerando inclusive repulsa em algumas pessoas. Criou-se um ambiente complexo em que muitas vezes o uso da camisa da seleção é visto como uma manifestação política. Esse fato é refletido em uma pesquisa realizada em novembro de 2022 pelo Instituto Travessias e divulgada pelo portal de notícias Metrópoles, que apontou que 26% dos brasileiros “pegaram ranço” da camisa amarela do Brasil. A pesquisa teve abrangência nacional e foi realizada com uma amostra de 1000 pessoas.

Fonte: Instituto Travessias / Metrópoles

Cesar Augusto Barcellos Guazzelli, doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor titular do Departamento de História da UFRGS, identifica essa situação como de extremo perigo: “Não há dúvida que essas simbologias nacionais foram sequestradas, a grande questão é quando, e se, serão recuperadas. Esse movimento é extremamente maléfico e partidário, e surge como uma forma de angariar apoiadores através do patriotismo, muito semelhante ao que aconteceu durante a ditadura militar”. Cesar ainda lembra que, depois de eleito, o presidente Lula tentou recuperar um pouco dessa simbologia, porém, sem muito sucesso, visto que, no dia da posse presidencial, a cor predominante era o tradicional vermelho do Partido dos Trabalhadores (PT), enquanto no dia das manifestações antidemocráticas pró Bolsonaro, a grande maioria estava uniformizada com a camisa da seleção.

Após esse caso das manifestações, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) divulgou uma nota oficial em suas redes sociais, repudiando o uso da camisa da seleção para fins políticos. Na nota ainda é dito que a CBF é uma entidade apartidária e democrática e que a amarelinha deve ser usada para unir e não para separar os brasileiros.

E o que o futuro reserva?

Em meio a um cenário turbulento como esse, é complicado imaginar o que será da seleção no futuro, mas, para Luciano Potter, jornalista do Grupo RBS, a tendência é que os brasileiros continuem acompanhando a equipe canarinha. “Os números de audiência nos jogos da seleção tanto na Globo, quanto na internet foram recordes em 2022. Além disso, nas últimas décadas, o futebol brasileiro tem obtido alguns ganhos, como principalmente o movimento feminino, o que faz com que atualmente tenhamos muito mais mulheres linkadas ao esporte, seja como jogadoras, jornalistas ou como torcedoras.” O jornalista, que cobriu a Copa do Mundo direto do Catar, ainda menciona o aumento de cânticos nos estádios devido ao Movimento Verde e Amarelo. Esse grupo, que funciona como uma torcida organizada do Brasil para todas as modalidades esportivas, foi criado em 2008 e, conforme consta no seu próprio site, tem o objetivo de revolucionar a forma como o brasileiro torce e apoia as suas seleções e atletas. Hoje, a seleção pode estar mais afastada da população, mas o final dessa história ainda é uma folha em branco, e resta saber como ela será preenchida.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo, da Fabico/UFRGS

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