CIDADANIA

Porto Alegre a serviço de quem?

Ana Paula Tavora
Caleidoscópio
Published in
7 min readApr 12, 2023

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Programa +4D de Regeneração Urbana do Quarto Distrito privilegia o mercado e não atende às demandas da comunidade local

Habitação é uma das necessidades mais urgentes no Quarto Distrito | Foto: Ana Paula Tavora.

“A persistirem esses governos que se colocam ao lado dos mais ricos, ali não vai ter lugar para os mais pobres.” É assim que Paulo Guarnieri, 67 anos, servidor público aposentado e integrante do Fórum Popular do Quarto Distrito, se refere ao trabalho do Poder Público Municipal na construção do Programa +4D de Regeneração Urbana do Quarto Distrito de Porto Alegre, aprovado na Câmara de Vereadores em 17 de agosto de 2022.

De autoria da Prefeitura gaúcha e com previsão de cinco anos para a conclusão das obras, o programa instituído através do Projeto de Lei Complementar Estadual 007/22 flexibiliza parâmetros urbanísticos e concede benefícios fiscais para impulsionar atividades e empreendimentos na região que compreende os bairros Floresta, São Geraldo, Navegantes, Humaitá e Farrapos. Além disso, o projeto também prevê obras públicas como a macrodrenagem do Arroio Tamandaré, a regularização das casas da Vila Santa Terezinha e melhorias no Terminal Cairú. De acordo com o material de apresentação do programa divulgado pela Prefeitura, o objetivo principal da iniciativa é “posicionar a região do Quarto Distrito no século XXI”.

No entanto, oito meses após a aprovação do +4D e seis meses após a criação de um novo plano diretor específico para o Quarto Distrito, pouco mudou no cenário da região. Com a presença cada vez maior de casas noturnas no bairro Floresta, como Fuga Bar, Canto Bar, Cortex e Lá no Distrito, obras que atendam às demandas da comunidade local ainda não aconteceram.

Para Ismael Luiz da Silva, 39 anos, integrante da Associação de Reciclagem Ecológica da Vila dos Papeleiros, nada mudou até então. “Tem alguns projetos em andamento, como novos estabelecimentos de shows em torno da Voluntários da Pátria. O resto ainda está no papel”, menciona o catador. O programa está dividido em três fases e a etapa inicial prevê investimentos especialmente para ações de habitação, saneamento básico e segurança pública, além de transformações nas diretrizes urbanísticas para facilitar a construção de grandes propriedades residenciais e comerciais. Ainda que haja urgência por moradia regular para os trabalhadores que vivem no local, a primeira iniciativa aprovada com as novas regras do projeto é uma torre luxuosa de 39 andares e 117 metros de altura, da Bewiki — plataforma de espaços e serviços, que será construída na rua Sete de Abril no bairro Floresta, e pretende ser o prédio mais alto de Porto Alegre.

Moradora há quase 10 anos dos arredores de onde será levantado o empreendimento, Maristoni Moura, 50 anos, enxerga o Programa +4D com preocupação e angústia. “Não há interesse em consolidar e garantir que o desenvolvimento seja sustentável e que as pessoas do território sejam incluídas”, desabafa a idealizadora do Coletivo Ksa Rosa, ambiente que acessibiliza o conhecimento e a cultura para a comunidade do entorno do Quarto Distrito.

O Quarto Distrito e o mercado imobiliário

O Quarto Distrito foi uma região historicamente destinada ao parque industrial da capital gaúcha, já que está localizado próximo à ferrovia e ao antigo Cais do Porto. Por conta das políticas rodoviaristas implementadas no Brasil a partir de 1950, os transportes ferroviário e hidroviário perderam força, e o Quarto Distrito ficou subutilizado. A solução que a comunidade local encontrou para morar foi a ocupação de imóveis e, para trabalhar, a coleta e manejo de resíduos recicláveis. Segundo dados do Observatório da Cidade de Porto Alegre, em 2010, aproximadamente 10 mil dos 46.689 habitantes da região Humaitá/Navegantes não possuíam nenhuma fonte de renda.

Em outubro do ano passado, dois meses após a aprovação do Programa +4D de Regeneração Urbana, foi sancionado outro projeto de lei (PL) — relatado na Comissão de Constituição e Justiça pelo vereador Ramiro Rosário (PSDB) — que institui novo Plano Diretor apenas para o Quarto Distrito. O Plano Diretor é um mecanismo legal que diz respeito aos aspectos físico-territoriais do município. Ele deve ser revisado de 10 em 10 anos e compreender a cidade como um todo.

“Porto Alegre caminha para uma flexibilização geral das regras de construção e de ordem urbanística, com graves riscos para o patrimônio material e imaterial privilegiando a demanda de mercado e não as necessidades da população trabalhadora”, Matheus Gomes, Deputado Estadual do Rio Grande do Sul

O PL aprovado prevê a liberação de empreendimentos sem limite de altura, isentando os empresários do imposto sob o solo criado, pagamento cobrado por cada andar adicionado ao prédio construído. Para a coordenadora do Grupo de Pesquisa em Sociologia Urbana e Internacionalização das Cidades da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Vanessa Marx, esses típicos prédios altos com janelas envidraçadas transformam a paisagem local. “O Quarto Distrito é uma zona de características industriais, de altura mais baixa, com potencial de recuperação do patrimônio histórico. Essa visão da expansão do capital vai descaracterizando a questão urbana.” No documento de apresentação do programa, boa parte das referências arquitetônicas dos prédios a serem construídos são de cidades europeias, como Paris e Barcelona.

Entretanto, práticas de transformações urbanas à serviço do lucro não estão restritas somente à Porto Alegre. No município de Itajaí, em Santa Catarina, o qual teve seu Plano Diretor revisado em 2018, edificações na beira-mar têm feito sombra na orla da Praia Brava, comprometendo a fruição do espaço público que é a praia. Na análise da Professora Betânia Alfonsin, coordenadora do Grupo de Pesquisa de Direito Urbanístico e Direito à Cidade da Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP), o Brasil vive uma “inflexão ultraliberal das políticas públicas”, dentre elas a política urbana. Para ela, esse contexto se apresenta por meio de uma série de manifestações. “Uma delas é justamente a alteração das regras da normativa urbanística, muito especialmente do Plano Diretor, para facilitar a implantação de projetos que são de interesse do mercado imobiliário”, garante a pesquisadora.

Ao recolher materiais recicláveis da rua, Ismael contribui para a limpeza da cidade e para o sustento da família | Foto: Ana Paula Tavora.

Participação popular

Em tramitação na Câmara de Vereadores de Porto Alegre desde maio de 2022, o Programa +4D contou com três audiências públicas no ano passado. A primeira em abril, realizada pelo executivo, e as outras duas em junho e agosto, realizadas pela Câmara. Todas ocorreram de forma virtual, ainda que a equipe técnica tenha visitado o local presencialmente. Segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o rendimento médio mensal por pessoa nos domicílios em que havia utilização de internet no Rio Grande do Sul era de R$1.880,00. Com uma população vulnerabilizada financeiramente e ainda impactada pela pandemia, o Quarto Distrito não teve a oportunidade de participar ativamente do processo de discussão do projeto, já que era necessário possuir telefone ou computador para presenciar as audiências.

Além disso, outras dificuldades de atuação popular nas decisões políticas da cidade têm sido encontradas. Conforme a presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), Clarice Oliveira, existe uma dificuldade de participação no Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental (CMDUA), inclusive com alguns cerceamentos. “Até o ano passado, um cidadão poderia se inscrever para se manifestar no Conselho sem limite de presença nas reuniões. Isso foi retirado pelo governo Melo”, aponta a arquiteta se referindo ao atual prefeito Sebastião Melo (MDB). Desde julho de 2022, uma pessoa comum pode participar dos encontros do Conselho — também virtuais — no máximo uma vez por mês.

A votação para aprovação do Programa de Regeneração Urbana do Quarto Distrito contou com 26 votos a favor e 10 contra. Na opinião do ex-vereador e atual deputado estadual Felipe Camozzato (NOVO), as concentrações populacional e de edificações, o uso do bairro para fins residenciais e de serviço e o estímulo à implantação de novos empreendimentos na área podem recuperar a região, abrindo espaço para as gerações de emprego e renda. Em contrapartida, para o deputado estadual Matheus Gomes (PSOL), que era vereador da capital quando o projeto foi votado, o +4D foca na população de renda elevada da capital e em um público imaginário. “Porto Alegre caminha para uma flexibilização geral das regras de construção e de ordem urbanística, com graves riscos para o patrimônio material e imaterial, privilegiando a demanda de mercado e não as necessidades da população trabalhadora”, declara o parlamentar.

Veja como os partidos votaram na Câmara Municipal para aprovação ou rejeição do Programa +4D:

Direito à cidade

A Constituição Federal de 1988 é o primeiro documento nacional que regulariza a política urbana, no Artigo 182. No trecho, a carta magna define que o Poder Público Municipal “tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.” De acordo com a professora e pesquisadora Betânia Alfonsin, todos os bens materiais e simbólicos que a cidade representa e oferece devem poder ser fruídos por todos de forma equitativa, em igualdade de condições. Ou seja, todos têm direito à cidade. “Diz respeito à possibilidade de quem vive na cidade poder desfrutar de todos os direitos de maneira livre, com autonomia e com apoio do Poder Público”, explica a especialista.

Através do Coletivo Ksa Rosa, Maristoni faz do Quarto Distrito um lugar de cultura, afeto e luta política | Foto: Ana Paula Tavora

O prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, venceu as eleições em 2020 com forte apoio da indústria, do comércio e da construção civil. Os valores mais altos doados à campanha, de 40 mil, foram de Ricardo Antunes Sessegolo, diretor da construtora Goldsztein e de José Isaac Peres, acionista do Grupo Multiplan. Paulo Guarnieri, integrante do Fórum Popular do Quarto Distrito, que trabalha diretamente com as demandas da comunidade da região, alerta: “A Constituição Federal está sendo violada por um Poder Público reacionário e conservador, que segrega os pobres enquanto lambe a bota dos ricos”.

Questionada sobre as problemáticas do Programa +4D, sobre a má recepção do projeto por parte dos moradores e sobre a urgência das obras de saneamento e moradia, a Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade de Porto Alegre (Smamus) não respondeu até o fechamento desta reportagem.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo da FABICO/UFRGS.

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