Educação

Reparação ou Segregação

Matrícula provisória da UFRGS é forma de exclusão

Isabela da Rosa Jardim
Caleidoscópio

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Foto: Isabela da Rosa Jardim

A política de ações afirmativas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), criada em 2008, tem o objetivo de contribuir para o combate à desigualdade social e econômica pela reserva de vagas destinadas às populações com menores chances de acesso ao ensino superior. Dentre os seus princípios, estão promover um espaço plural e garantir a permanência dos ingressantes pelo sistema de cotas, mediante o oferecimento de outros benefícios e apoio.

A política prevê reserva de 50% das vagas, tanto de vestibular quanto de SiSU, para estudantes egressos do Sistema Público de Ensino Médio de 8 categorias.

Visando evitar fraudes, a universidade exige que o estudante da reserva de vagas, além da documentação solicitada aos alunos da ampla concorrência, também apresente comprovantes específicos do direito à cota. Os candidatos pretos e pardos ainda devem se submeter à aferição do pertencimento étnico-racial frente a uma comissão verificadora de 16 membros de diversos gêneros, naturalidades, etnias e raças. Já os indígenas precisam apresentar uma declaração de reconhecimento comunitário realizada por uma liderança. Os documentos necessários variaram desde a criação da política.

O Problema

Devido à demora do processo de verificação da documentação e da aferição étnico-racial, os ingressantes pelas ações afirmativas, até a homologação de sua matrícula, cursam o ensino superior em uma condição precária, com matrícula provisória, e é aqui que está o maior problema.

A maior parte dos cotistas permaneciam por mais de 1 ano com matrícula provisória, aguardando a validação de seus documentos. A possibilidade de desligamento fez diversos jovens recorrerem à justiça para mudar esse cenário.

O procurador Enrico Rodrigues de Freitas da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão começou a se envolver com a temática em 2018. Ele conta que, naquela época, a UFRGS possuía em torno de 500 estudantes em situação de matrícula provisória e já havia notificado cerca de 200 das ações afirmativas de que seriam desligados da universidade. Grande parte deles já estava quase na metade da graduação e, indignados com o descaso com seus estudos, recorreram, com o auxílio de um professor, ao procurador. Os dilemas dos estudantes variavam, mas o medo era o mesmo, perder a vaga tão batalhada. Naquele período, o processo burocrático era ainda mais difícil que o atual. “Era uma forma de exclusão da universidade”, afirma Freitas

Enrico afirma que as maiores dificuldades enfrentadas são os prazos curtos para o envio da documentação, como comprovante de residência e bancário ou atestado médico, o modo como é feita a intimação, a dificuldade de obter a documentação e, principalmente, a incapacidade da universidade em compreender que tais exigências são feitas a um grupo em situação de maior vulnerabilidade socioeconômica, portanto, trabalhadores com pouco tempo disponível para os estudos e para a burocracia. Os desafios enfrentados por esses jovens contradizem o propósito das ações afirmativas. O procurador reitera que é essencial auxílio e suporte, providenciado pela UFRGS, ao longo de todo o processo, para que esses estudantes não sejam mais prejudicados do que já são pela sociedade.

Dessa forma, a partir de centenas de relatos estudantis, o procurador entrou com um Inquérito Civil contra a universidade que modificou, para melhor, alguns dos processos. O desligamento dos jovens que o procuraram em 2018 foi suspenso, foi estabelecido um prazo máximo para o processo de desligamento e a comprovação de renda de genitores foi simplificada, entre outras medidas. Contudo, as dificuldades não acabam com a homologação da matrícula.

As experiências

Estudante de administração na UFRGS, Thayna Capaverde Sasso ingressou em 2021 pela modalidade denominada L4/L6, que é a de candidato egresso do Sistema Público de Ensino Médio independentemente da renda familiar, autodeclarado preto, pardo ou indígena. Ela conta que, pela renda total de sua família, teria direito a ingressar pela modalidade L2, mas optou por não declarar sua renda pelas dificuldades que outros amigos e familiares já haviam passado em reunir a documentação exigida.

“Me senti extremamente insegura. Recebi a notícia de que havia passado em meados de março, a matrícula foi realizada em agosto e a aferição énico-racial só no mês de fevereiro do ano seguinte, passado quase um ano desde a aprovação por conta da pandemia de Covid-19. Nunca cheguei a comemorar, pois tinha receio de minha documentação ou autodeclaração serem reprovadas”, Thayna Capaverde Sasso, estudante da UFRGS.

Thayna acredita que seja justo evitar fraudes, mas que passar pelo processo não foi fácil. Para ela, o momento mais difícil foi a aferição, “são pessoas estranhas avaliando se somos pretos o suficiente”. A convocação para a aferição foi enviada para ela por email, pedindo que escolhesse se gostaria que o processo fosse realizado de forma presencial ou online, ela escolheu presencial para não ficar sujeita a quedas na rede de internet durante um momento tão decisivo. Entretanto, uma semana antes da data, Thayna recebeu um link para a videochamada, sem a opção presencial. Como ela havia previsto, a internet caiu e a deixou na mão, contudo, graças a compreensão das avaliadoras que desligaram suas câmeras para tornarem a conexão de Thayna mais estável, três dias depois ela recebeu o email de comprovação.

“Fiquei muito nervosa, a aprovação da minha matrícula pendente há meses dependia exclusivamente daquele momento, da conexão da internet, da boa vontade de estranhas”, Thayna Capaverde Sasso, estudante da UFRGS.

Outra estudante, do segundo semestre de Publicidade e Propaganda, Ana Carolina de Oliveira, ingressou na universidade em fevereiro de 2022 pela modalidade L2: candidato egresso de Sistema Público de Ensino Médio com renda familiar bruta mensal igual ou inferior a 1,5 salário mínimo nacional per capita autodeclarado preto, pardo ou indígena. Até agosto do mesmo ano, Ana Carolina permanecia em situação de matrícula provisória, aguardando o resultado do processo de aferição realizado em junho e a aprovação de sua documentação comprovando a renda familiar, entregue em fevereiro.

“Esse período de matrícula provisória e de recurso abalou muito minha saúde mental. Eu lembro de chorar muito, de ir dormir chorando. Parecia que tudo que eu tinha conquistado até ali estava fugindo de mim e eu não tinha controle”, Ana Carolina de Oliveira, estudante da UFRGS.

No início de agosto do ano passado, ela descobriu que o processo de aferição étnico-racial havia sido bem sucedido, entretanto, a documentação que comprovava a renda familiar foi invalidada por exceder em cerca de R $300,00 o valor máximo. Ana Carolina precisou entrar com recurso e autenticar, por meio de declarações familiares, prints de conversas online e comprovantes bancários, que aquele valor foi fornecido por outros parentes para que a família pudesse ajudar no sustento da sua avó.

Diferente de muitos, a estudante conseguiu o auxílio de uma professora da universidade e recebeu orientações do procurador Enrico de Freitas para apresentar os argumentos e documentos necessários para recorrer da decisão da universidade e obter a homologação de sua matrícula, que felizmente foi confirmada. Contudo, Ana Carolina acabou sendo prejudicada pelo estresse do processo e a precariedade de sua situação de matrícula. A estudante precisou dedicar o tempo reservado aos estudos à busca de documentos e não teve um bom desempenho em uma das provas que coincidiram com o período do recurso. Ana Carolina acabou caindo na lista de prioridade para matrícula do semestre seguinte, sem poder escolher turmas com horários mais compatíveis com o seu trabalho.

O assistente social da coordenação de seleção da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (PRAE) da UFRGS, Lourenço Brito Felin, que trabalhou nos processos de ingresso de cotistas de 2013 à 2017 e também em 2022 afirma que, assim como o envio de documentos é um obstáculo na matrícula dos ingressantes pela reserva de vagas, o grande volume e a complexidade da documentação também são dificuldades enfrentadas pela comissão avaliadora. “É muito difícil distinguir um candidato com perfil condizente com a vaga de um candidato que omite renda para se enquadrar na política de cotas mesmo sem ter o perfil socioeconômico”, conta Lourenço.

Devido aos desafios enfrentados pela universidade durante a matrícula dos alunos cotistas, o assistente social afirma que o processo precisa de aprimoramento. Ele ressalta a necessidade de melhora na comunicação com os candidatos para facilitar o entendimento sobre os objetivos de cada documento, sua importância para a análise e a consequência da não entrega. Assim como o aperfeiçoamento da discricionariedade para flexibilizar a isenção da apresentação de certos documentos considerando outros elementos e indicadores de perfil mais amplos, como moradia e ocupação dos membros do grupo familiar.

Com esses relatos, é possível perceber que, apesar de as cotas terem criado diversas oportunidades para a camada da população mais marginalizada, o processo ao qual os estudantes são submetidos para usufruir dos benefícios da reparação histórica ainda é excludente e precisa ser aperfeiçoado.

*Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de Jornalismo da FABICO/UFRGS.

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