ACESSIBILIDADE

Tornando acessibilidade visível

Mesmo com diretrizes e leis sobre o assunto, sites e aplicações acessíveis são minoria, e acessibilidade assertiva compõe um desafio para empresas.

Thiago Müller
Caleidoscópio

--

Camila Nunes sentada em uma cadeira trabalhando. Está de costas e levemente à esquerda da câmera. Olha para a tela de seu computador, que está com um documento de texto aberto, e seu rosto está um pouco virado para a câmera para conversar com a equipe de reportagem. Tem um cabelo preto levemente ondulado, está com óculos escuros em tons marrons e fones de ouvido pretos, usa uma camiseta branca e crachá da empresa GaúchaZH.
A jornalista Camila Nunes em sua estação de trabalho | Foto: Ana Gonzalez

Camila Nunes, 40 anos, acessa a internet para todos os afazeres na sua rotina de trabalho. Jornalista e produtora na Rádio Gaúcha, em Porto Alegre, Camila tem uma rotina intensa na redação. Utilizando aplicativos de mensagens, consegue atuar na produção de conteúdo para a rádio líder em audiência no Rio Grande do Sul. “A gente conversa com assessorias, conversa com os entrevistados, conversa com os apresentadores também”, explica.

Porém, tudo isso só é possível porque ela utiliza um leitor de tela no celular e no computador, já que Camila é cega de nascença. Esse programa de voz realiza a leitura do que está na tela conforme o usuário navega. É uma de várias ferramentas de acessibilidade que são utilizadas por diversas pessoas para quebrar barreiras de usabilidade dentro de páginas e aplicações digitais. De acordo com a Pesquisa Nacional em Saúde (PNS) de 2019, 8,4% da população do país, com dois anos ou mais, tinha algum tipo de deficiência.

Segundo a jornalista, o problema começa quando ela tem que utilizar sites e aplicativos externos que não estão preparados para ser acessíveis. E isso acontece com a maioria deles. Nesse caso, mesmo que o celular de Camila tenha ferramentas de acessibilidade de fábrica, ela não consegue acessar os conteúdos.

A questão de acessibilidade digital não é nova. A Lei Brasileira de Inclusão aprovada em 2015, diz que “é obrigatória a acessibilidade nos sítios da internet […] para uso da pessoa com deficiência (PcD), garantindo-lhe acesso às informações disponíveis”. Além dessa, há uma ampla gama de legislações e diretrizes que abordam o tema. Mesmo assim, uma pesquisa realizada em 2022 pela BigDataCorp, em parceria com o Movimento Web Para Todos, chegou à conclusão de que menos de 1% dos sites brasileiros foram aprovados em todos os testes de acessibilidade aplicados.

O que, de fato, torna um conteúdo acessível na Web?

Para o grupo World Wide Web (W3C), um consórcio internacional de empresas, órgãos governamentais e organizações independentes que desenvolve os padrões da web que conhecemos, em seu site corporativo, acessibilidade significa projetar e desenvolver sites, ferramentas e tecnologias que PcDs possam usar. No entanto, acessibilidade é muito mais do que isso.

Reinaldo Ferraz, gerente de projetos na W3C Brasil, explica que a acessibilidade na web é o que possibilita que pessoas com deficiência não encontrem “barreiras” ao navegar ou utilizar algum aplicativo digital. Assim, tornar o conteúdo acessível também propicia que pessoas que não têm deficiência sejam beneficiadas. “A barreira não é deficiência. A barreira é a aplicação que não é acessível”, diz.

De acordo com um informativo do Instituto Brasileiro de Geografia e estatística (IBGE) sobre a referida PNS, publicada em 2019, são PcDs apenas pessoas que alegam ter muita dificuldade física, auditiva, visual ou mental. E não classifica dessa forma aqueles que têm dificuldade moderada ou baixa, que também podem necessitar de adaptações de acessibilidade, assim como pessoas idosas, com dificuldades temporárias ou que por qualquer outro motivo precisem modificar o tamanho do texto, fonte, contraste ou estrutura da página. Segundo Reinaldo, todos, em algum momento, vão necessitar de acessibilidade em aplicações. Um exemplo disso é um ambiente com muita incidência de luz, em que o usuário precisa modificar o contraste das páginas para leitura.

Marcelo Sales, especialista em acessibilidade digital e design inclusivo e CEO da empresa Tudo É Acessibilidade, diz que é necessário considerar que a pessoa com deficiência possa interagir com a tecnologia de modo diferente do que o provedor do site ou aplicação prevê. Normalmente, quando um site é projetado, os desenvolvedores pensam em uma navegação com mouse, por exemplo, mas pode haver outros tipos de interação. “O motivo eu não preciso saber. Eu só preciso saber que a pessoa pode interagir com algum método diferente do mouse”, diz.

O próprio grupo W3C possui diretrizes que orientam como promover inclusão na Web. Porém, seguir essas regras não é o suficiente. Tornar um site tecnicamente acessível é a parte mais fácil do processo. A grande questão é se o que foi projetado realmente vai funcionar para os usuários. Isso ocorre porque a verificação de acessibilidade é realizada por ferramentas digitais e não por pessoas. E, às vezes, a tecnologia pode não ser realmente eficiente quando chega ao mercado, mesmo que a máquina tenha feito a comprovação de acessibilidade. Para Marcelo, a solução para isso se torna complexa dependendo da profundidade que a empresa desenvolvedora quer dar ao tema. Uma acessibilidade assertiva requer profissionais qualificados de várias áreas do conhecimento e uma cultura de acessibilidade dentro do local de trabalho.

Conforme explica o gerente da W3C Brasil, desde o começo da internet comercial já existiam diretrizes para promover acessibilidade digital. “A gente tem documentação de acessibilidade desde 1999, então essa talvez seja uma questão que hoje mesmo a gente se pergunte, ‘por que a gente ainda não desenvolve aplicações acessíveis, sendo que tem orientações e diretrizes de acessibilidade já há tanto tempo?’”

Um dos motivos talvez seja a variedade de deficiências físicas e psíquicas existentes e a complexidade da interação entre humano e tecnologia. Tornar um site ou aplicativo acessível envolve diferentes áreas de conhecimento. Vai desde o planejamento da estrutura, do design intuitivo de navegar, até o cuidado com a forma como o conteúdo é escrito, o tamanho da fonte ou se a leitura é agradável. “Quando a gente entra em deficiências neurológicas, algumas deficiências invisíveis, como TDAH (déficit de atenção e hiperatividade), dislexia, esses tipos de deficiência se envolvem muito na forma como você está se comunicando”, explica Marcelo.

Criar conteúdo que sejam realmente acessíveis também beneficia o provedor de serviços. Marcelo explica que essa é, inclusive, uma das formas que empresas de referência, como a Apple, usam pra agregar valor ao seu produto. E, para donos de páginas, contribui para indexação em mecanismos de pesquisa, como o Google. Ou seja, fica mais fácil para qualquer usuário encontrar o que busca na web.

Foto por cima do ombro de uma pessoa desconhecida, com camisa xadrez bordô com linhas brancas, pulseira de elos de metal e relógio de pulso com pulseira de couro preto e relógio branco. A foto mostra suas mãos operando uma adaptação em Braile para teclado de computador. Logo acima do equipamento está um teclado comum. Os equipamentos estão em cima de uma bancada de trabalho.
Notebook com adaptações em braile | Reprodução: unsplash

Barreiras culturais na acessibilidade Web

Para Volmir Raimondi, ex-vice-presidente da União Mundial dos Cegos, para resolver as questões de acessibilidade tecnológica, não basta somente criar normas, é preciso implantá-las. As normativas surgem a partir das reivindicações das entidades relacionadas à promoção de direitos, mas deve-se continuar lutando para que essas medidas sejam efetivamente implantadas, e isso está diretamente ligado à conscientização de toda a comunidade. “A gente tem um chavão aqui: tem a lei que pega e a lei que não pega. Então, a diferença entre pegar e não pegar é o nível de conscientização de que aquilo pode melhorar a sociedade”, afirma Volmir.

A primeira iniciativa, na opinião dele, deveria vir do governo, dando o exemplo de páginas realmente acessíveis. Porém, isso não acontece, conforme mostra a pesquisa do Brazilian Network Information System, que revela que 98% dos sites governamentais não atendem padrões de acessibilidade. “O sistema em que a gente tem que trabalhar dentro do governo federal, que é um sistema próprio, onde se faz todo o processo de trabalho dentro do próprio governo, não é acessível. Ele é, digamos, mais ou menos acessível”, critica Volmir.

“Nada para nós sem nós.” Volmir Raimondi, ex-vice-presidente da União Mundial dos Cegos

Ele também explica que uma solução eficaz para a empresa que queira trabalhar com produtos acessíveis é ter no seu quadro funcional pessoas com deficiência. No entanto, apenas 1,07% do total de empregos formais do Brasil é ocupado por PcDs, de acordo com a Relação Anual de Informações sociais (RAIS) do Ministério da Economia. Para Volmir, só existe acessibilidade de verdade se essas pessoas estiverem no centro do debate. “Existe uma máxima na convenção dos direitos das pessoas com deficiência da ONU que diz ‘nada para nós sem nós’”, reitera.

Quanto a isso, Camila Nunes complementa: “Falta cultura de acessibilidade no Brasil de maneira geral, porque existe uma invisibilidade das pessoas com deficiência. Seja do poder público, da iniciativa privada, de pessoas que trabalham pela internet. Somos invisíveis em geral, então essa falta de cultura, de acessibilidade, reflete na internet, reflete em qualquer área, em qualquer campo”

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do Curso de Jornalismo da FABICO/UFRGS

--

--