SAÚDE PÚBLICA

Um ato de amor

Projeto Entrega Responsável busca garantir direitos de mulheres que querem entregar seus filhos para adoção

Victoria Heinzelmann
Caleidoscópio

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A entrega é uma chance para que a criança seja adotada logo nos seus primeiros anos de vida | Foto: Marjonhorn/Pixabay

O Entrega Responsável é um projeto criado em 2017 pela Coordenadoria da Infância e Juventude do Estado do Rio Grande do Sul (CIJRS) que garante o acolhimento das mulheres que pretendem entregar seus filhos para adoção. De acordo com Marleci Hoffmeister, analista do Poder Judiciário da CIJRS, o projeto busca tranquilizar e orientar mulheres que estão no final da gravidez ou que recém tiveram filhos e querem que ele seja adotado, sem que elas sejam criminalizadas.

Diferentemente do abandono de recém-nascidos, que é considerado crime com pena de detenção de seis meses a dois anos, a entrega responsável está amparada pela Lei nº 13.509/2017, em seu artigo 19-A, que protege os direitos tanto da gestante quanto da criança, garantindo o sigilo total de sua identidade e do nascimento durante e após o procedimento.

A mulher que optar pela entrega deve entrar em contato com a Vara da Infância e Juventude de sua região e manifestar seu interesse. Os profissionais da equipe técnica vão coletar informações e orientar sobre a importância do pré-natal. Caso seja necessário, já é feito o encaminhamento para uma rede de saúde. O acompanhamento acontece durante toda a gestação. Após o parto, é realizada uma audiência judicial para confirmar se a entrega será efetuada. Somente após essa confirmação que começa o processo de encaminhamento da criança para uma família que esteja apta a adotá-la.

Durante a gestação, a mulher pode retomar o desejo de continuar com a criança, à medida que a equipe técnica trabalha as motivações que a levaram a optar pela entrega, mas em nenhum momento, durante o processo, ela pode ser influenciada ou constrangida. “É importante que quem acolha, não tenha prejulgamentos. A decisão é dela e, diante do sistema de justiça, essa decisão deve ser respeitada”, diz Marleci.

A analista ainda acrescenta que, caso haja constrangimento durante o processo, a gestante deve procurar a ouvidoria do poder judiciário e denunciar que ela não teve um atendimento adequado. “É uma decisão dela, só ela sabe o que está passando para entregar essa criança, e o servidor que atendê-la deve assegurar que a manifestação dela não é nenhum crime. Entregar o filho legalmente para adoção não significa demonstrar que ela não tem responsabilidade, ou que ela não queira que o filho tenha acesso aos seus direitos.”

A CIJRS não tem um levantamento preciso de quantos casos foram registrados desde o início do projeto. Isso é resultado da falta de informações das comarcas de cada região, que nem sempre avisam quando as entregas são realizadas. Em razão disso, de acordo com Marleci, a Coordenadoria está buscando um sistema para que ainda este ano as informações sejam disponibilizadas.

Falta informação

Para Lediane Machado Gonçalves, bacharel em direito, que tem pesquisado sobre o tema, ainda falta divulgação do projeto Entrega Responsável. “Muitas vezes essas mulheres têm medo de julgamentos e acabam não manifestando seu interesse por falta de informação, por não saberem que elas possuem esse direito.” Ela considera que a informação deveria ser transmitida abertamente pelos postos de saúde e por programas do governo e que a mídia poderia contribuir de maneira positiva para esses casos. “A entrega é mais falada quando aparece de maneira negativa para a imagem da mulher, contribuindo para que ela seja julgada pela sociedade. A mídia pode ajudar divulgando informações sobre o processo, sobre o que acontece com a criança e reforçando que a mulher que realiza a entrega é amparada pelo sigilo”, opina Lediane.

O projeto existe principalmente para que sejam evitados riscos à saúde da mulher, como abortos clandestinos, e riscos para a criança, como o crime de abandono, violência e infanticídios. “A gente não quer que essa mãe cometa uma loucura que possa colocar ela em risco, como um aborto, ou colocar essa criança em risco, de repente jogando ela na lata do lixo. O projeto visa fazer essa proteção”, diz Marleci.

“A entrega responsável não é um ato de descaso, é um ato de amor”, Lediane Machado Gonçalves, bacharel em direito

Além disso, segundo Bruna Ludwig de Souza, psicóloga residente em saúde da criança, violência e vulnerabilidade, a entrega é uma forma de dar uma nova possibilidade para aquela criança, pois assim ela pode ter a oportunidade de se desenvolver em um ambiente afetivamente mais estável e menos vulnerável socialmente.

De acordo com ela, existem diversos motivos para que a entrega seja realizada. Muitas vezes, a mãe deseja essa criança, mas a desestrutura familiar em que ela se encontra, acaba não sendo um ambiente saudável para essa criação. “A criança que cresce em um ambiente desorganizado, instável e sem afeto pode sofrer atrasos no desenvolvimento e futuramente ter problemas de relacionamento. Existem diversos efeitos colaterais de crescer em um ambiente sem afeto e hostil”, explica a psicóloga.

“A entrega responsável não é um ato de descaso, é um ato de amor, de cuidado. É a garantia de que a criança vai estar amparada, segura. Uma oportunidade que essa mãe tem de permitir que essa criança tenha uma família com condições para criá-la, tanto afetivamente quanto financeiramente. Não é um ato fácil, mas acaba sendo benéfico para ambas as partes e evita um possível abandono no futuro”, complementa Lediane.

Até março deste ano, 448 crianças e adolescentes estavam aptos para adoção, sendo contabilizados 342 no interior do Estado e 106 na capital, segundo dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA). A entrega é uma chance para que a criança seja adotada logo nos seus primeiros anos de vida, reduzindo o seu tempo de permanência em abrigos.

Reportagem produzida para a disciplina de Fundamentos da Reportagem do curso de jornalismo da FABICO/UFRGS

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