Os crimes da Alemanha

A Alemanha vai reconhecer a sua história brutal e colonial? E como irá documentar ou lembrar esse período violento?

Suelen Calonga
Calonga e o Drama Barroco
7 min readJun 19, 2020

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[Traduzido na íntegra por mim a partir do original em inglês Germany’s crimes, de George Kibala Bauer, publicado em 03.01.2018 no site Africa is a country.]

Que ideologias e interesses motivaram o colonialismo alemão? Qual é a percepção dos Alemães sobre o colonialismo? Como foi organizada a administração colonial alemã? Qual o contexto dos crimes do colonialismo alemão? Quais são as políticas da memória colonial na Alemanha?

Mulheres Herero, Opuwo, norte da Namibia. Imagem: Carsten ten Brink via Flickr.

Numa coleção de ensaios recentemente publicada (até agora apenas em alemão), os historiadores Horst Gründer e Hermann Hiery, procuram dar uma resposta a estas questões. O colonialismo alemão continua a ser um campo muito sub-pesquisado e recebe ainda menos atenção no discurso social alemão ou dentro do sistema educativo alemão. Dada a história da Alemanha, as pessoas reconhecem a importância de lidar com o passado difícil (em alemão “Aufarbeitung”) e existe uma consciência considerável sobre os perigos das concepções nacionalistas “do passado”. No entanto, a incapacidade de enfrentar a história colonial relativamente curta, mas brutal, da Alemanha, e a política da sua memorialização continuam a assombrar a Alemanha no presente. Entre 1884–1919 o império colonial alemão em África incluía a África Alemã Oriental, incluindo Tanganica, Burundi, Ruanda, Witu (parte do atual Quênia), bem como partes da atual Tanzânia e Moçambique; a África Alemã do Sudoeste (Namíbia e partes do actual Botswana); e a África Alemã Ocidental(Camarões e Togo). O legado do “império alemão” pode, no entanto, ser traçado desde antes, até à Prússia.

O livro de Gründer e Hiery, “Os Alemães e suas colônias”, uma coletânea de artigos, lança luz sobre a longa “jornada” do colonialismo alemão. Nele, o historiador Ulrich van der Hayen aponta quais eram as ambições imperiais iniciais da Prússia e a como elas foram documentadas e estrategicamente implantadas: O então imperador da Prússia, Friedrich Wilhelm (1620–88) se juntou a uma série de interesses comerciais da Holanda para cooptar, forçosamente, líderes locais onde hoje é o Gana, e estabelecer a colônia chamada “Groß Friedrichsburg” (também conhecida como “Costa de Ouro de Brandeburgo”). Posteriormente, foi criada a “Brandenburg-Afrikanische Kompanie”, um espelho do empreendimento holandês Companhia das Índias Orientais, com o objetivo de fundir interesses comerciais, geopolíticos e imperiais. Embora “Großfriedrichsburg” tenha sido “vendida” aos holandeses em 1721 (tendo sido “adquirida” apenas em 1683), tanto os grupos de interesse por trás do renovado entusiasmo colonial dos anos 1870–1880, como o Terceiro Reich (que nomeou Friedrich Wilhelm o “criador” do primeiro império alemão), empregaram uma narrativa romantizada para legitimar o imperialismo dentro da sociedade alemã.

Em outro texto, Winfrid Baumgart, ao falar sobre as motivações e ambições coloniais da Alemanha no final do século XIX centra-se em Otto von Bismarck, quem cunhou a célebre frase “o mapa de África está na Europa”: Baumgart argumenta que as motivações pessoais de Bismarck para apoiar o colonialismo alemão e o acolhimento da famosa “Conferência de Berlim” (1884–85), não foram tanto motivadas por interesses comerciais ou civilizacionais, mas sim pelo seu desdém pela administração britânica Gladstone e pelas rivalidades políticas internas no contexto do futuro político incerto de Bismarck na Alemanha, depois de Wilhelm I. Apesar desta contribuição, o livro fica aquém de examinar criticamente o legado do colonialismo alemão. Os seis capítulos que tratam da “vida colonial quotidiana” normalizam o extrativismo e a violência, enquadrando-a em termos puramente funcionais, e pode-se notar claramente uma vertente sobrecompensadora ao longo do livro, pontuando temas além da “resistência e da violência”, em vez de situar o “dia a dia” no contexto do domínio e da exploração.

Embora Gründer e Hiery critiquem com razão o mito do “bom colonizador alemão” e dos seus “leais nativos”, construído para realçar a suposta “superioridade alemã” em relação a outras potências coloniais europeias durante o regime nazista, e de alguma forma continua a ser um mito popular, o livro poderia ter feito mais para combater este mito.

O capítulo de Hilke Thoda-Arora sobre as “exposições coloniais” , ou “zoológicos humanos” (Völkerschauen) que foram muito populares na Alemanha e na Bélgica, é um relato interessante de como estas exposições evocaram um sentimento de “superioridade civilizacional”, que alimentou o “aventureirismo colonial” entre os espectadores. No entanto, o capítulo, e o livro em geral, não mostram como o legado de Völkerschauen e a “falsa alteridade” de forma mais ampla estão intimamente ligados ao forte envolvimento dos intelectuais alemães na criação do racismo científico e da craniologia, e continuam a influenciar a atual concepção alemã dos africanos, e de povos de outras etnias não-brancas. Estas questões mais ambiciosas não só teriam tornado o livro mais acessível para além da academia, como também teriam permitido aos leitores compreender que as origens da política de nostalgia que molda o populismo de direita podem, em certa medida, ter sua origem no passado colonial não-resolvido da Alemanha (e do Ocidente em geral).

Embora o livro mencione importantes debates contemporâneos em torno da memória no contexto de monumentos, nomes de rua e livros infantis, que recentemente também ganharam alguma atenção nos meios de comunicação alemães, há questões intelectuais e sociais mais profundas a abordar. O discurso público que se seguiu à excepcional “onda” de migrantes e refugiados para a Alemanha, que de fato normalizou pontos de vista altamente problemáticos e racistas no discurso mainstream, e o subsequente aumento da violência de extrema-direita, deixam isso claro. A contínua nostalgia do império e do racismo não são monopolizados pela AFD, que constitui cerca de 14% do governo. Basta ouvir alguns membros do partido bávaro CSU para compreender que estas ideias também influenciam o discurso popular: o antigo ministro alemão do Desenvolvimento (!) disse que todos os homens africanos gastam o seu dinheiro em álcool e drogas, o atual (!) ministro do Interior referiu-se a um cantor alemão negro como nigger e o partido em geral continua a enquadrar os migrantes e refugiados como um perigo.

Controversamente, o capítulo de Winfried Streitkamp sobre guerra, resistência e uso da força questiona se o genocídio contra os Herero e os Nama deve ser referido como tal e se deve realmente ser entendido como parte de um contexto mais amplo da história de genocídios perpetrados pela Alemanha. Sem aprofundar a ampla evidência histórica (se estiver interessado em ler este livro do Prof. Jürgen Zimmerer), basta considerar a ordem que o comandante alemão Lothar von Trotha deu em 1904:

Dentro da fronteira alemã, todo Herero deve ser baleado com ou sem espingarda, com ou sem gado, não vou acolher mais mulheres ou crianças, levem-nas de volta ao seu povo ou atire nelas.

O relato negacionista do livro é especialmente relevante pela abordagem contemporânea hipócrita e profundamente preocupante no reconhecimento do genocídio por parte do governo alemão. Depois que o ex-Presidente do Parlamento, Norbert Lammert, apelou ao governo para reconhecer o genocídio em 2015 e a Alemanha se comprometeu a fazê-lo, ficou a esperança de que a Alemanha encontraria uma resolução com a Namíbia e com as vítimas e ativistas Herero e Nama. No entanto, desde de 2015, a Alemanha se abstém de utilizar o termo “genocídio” no contexto das negociações bilaterais em curso com a Namíbia. Sentindo-se excluídos das conversações entre os países, os representantes Herero e Nama apresentaram, separadamente, uma ação judicial coletiva contra a Alemanha no Tribunal Distrital do Sul, em Nova Iorque, pedindo reparações. Os juízes estão atualmente deliberando sobre a admissibilidade do processo. Parte da estratégia de defesa da Alemanha nas audiências de deliberação incluiu o argumento repulsivo de que as obrigações internacionais ao abrigo da definição do termo “genocídio”, de 1948, não podem ser retroativas. Entretanto, o enviado do governo alemão à Namíbia, Ruprecht Polenz (CDU), excluiu os preparativos pessoais. No contexto da contínua negação e da incapacidade de falar diretamente com as vítimas, a Alemanha falha não apenas com os Herero e o Nama, mas perde também uma autoridade moral considerável em assuntos internacionais. No contexto do reconhecimento do genocídio armênio pelo Parlamento alemão em 2016, e do subsequente apelo para que a Turquia reconheça os lados obscuros da sua história, a autoridade moral da Alemanha para dar lições a qualquer outro país sobre a política da memória está muito diminuída.

“Parte da estratégia de defesa da Alemanha nas audiências de deliberação incluiu o argumento repulsivo de que as obrigações internacionais ao abrigo da definição do termo “genocídio”, de 1948, não podem ser retroativas”.

Voltando à obra de Gründer e Hiery, é chocante que um livro que procura fornecer uma “perspectiva abrangente e erudita sobre o colonialismo alemão” não tenha incluído nenhuma perspectiva de historiadores das ex-colônias alemãs. Como mostra o projeto fotográfico “História Visual do Genocídio Colonial”, de Jürgen Zimmerer e da namibiana Vitjitua Ndjiharine, estas colaborações desvendam perspectivas importantes e contestam a atual memória do colonialismo alemão que necessita urgentemente se descolonizar e envolver estudiosos das ex-colônias. Como T.S. Elliott escreve no seu poema Four Quartets:

O tempo presente e o tempo passado. Ambos estão talvez presentes no tempo futuro. E o tempo futuro está contido no tempo passado. Se todo o tempo está eternamente presente, todo tempo é irrecuperável. O que poderia ter sido é uma abstração. Permanece uma perpétua possibilidade. Apenas um mundo de especulações. O que poderia ter sido e o que tem sido. Apontar para um fim, que está sempre presente.

[nota do autor, todas as referências em alemão]: Se estiver interessado em iniciativas que tentem lidar com a história colonial alemã siga as iniciativas Koloniales Erbe, Mapping Postkolonial, e Berlin Postcoloniales. Sobre o tema do racismo contemporâneo na Alemanha considere a leitura do livro de Mohamed Amjahid Unter Weißen (Entre brancos).

[nota minha]: Se vc usa o Google Chrome, é só clicar com o botão direito em qualquer lugar “em branco” da página e clicar em “traduzir para” ;)

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