Dia do Surdo: o valor da comunidade surda e a inclusão social

Camaleótica
Camaleótica
Published in
7 min readSep 26, 2016

Através da Lei n°11.796/2008, o dia 26 de setembro ficou conhecido no Brasil como o Dia Nacional do Surdo. A data é uma pequena parte do que o mês de setembro inteiro significa para a comunidade surda: o “Setembro Azul” é dedicado a palestras, passeatas, aulas, debates e demais atividades voltadas à inclusão social dos surdos e o valor que os deficientes auditivos possuem na sociedade brasileira. Desta forma, são postos em problematização vários setores e áreas que deveriam ser inclusivas para esta comunidade, mas possuem defasagem quanto a parte prática, sendo que no campo jurídico, muito é declarado como lei, entretanto não acontece na realidade.

A dificuldade de inclusão social que os deficientes auditivos possuem se deve pela falta de estímulo de comunicação entre esses e os demais setores da comunidade. Apesar da Libras (Língua Brasileira de Sinais) ter sido reconhecida através da Lei n°10.436/2002 e Decreto n°5.626/2005, como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais, ela é um grande passo em meio a uma enorme caminhada destinada aos surdos, uma vez que apesar do reconhecimento jurídico da língua espaço-visual, a inclusão destes indivíduos a locais, setores, campos e ambientes é dada de forma complicada e problematizada.

No campo educacional, a maior discussão envolvendo a comunidade surda é sobre o bilinguismo na educação. Ao contrário do que muitas pessoas pensam (e até profissionais desta área) este ensino não é baseado exclusivamente em um professor na sala de aula e um intérprete traduzindo tudo o que o primeiro fala, de tal forma que o aluno surdo aprenda todo o conteúdo através da tradução. O que deve ocorrer é o diálogo, o debate e a discussão entre esses dois profissionais para o planejamento pedagógico.

A especialista na área da surdez, Eulalia Fernandes, em seu livro “Linguagem e Surdez” aborda em um capítulo inteiro a questão do bilinguismo na educação, além de demonstrar como que a aquisição da língua surda em um projeto de ensino é importante não só para a formação do aluno, mas para a formação do professor.

A adoção de uma filosofia educacional consistente, que dê conta de um projeto educacional para surdos, não pode ignorar a interlocução constante. Não há apenas surdos a ensinar, mas ouvintes e surdos a aprender como educar surdos. Os últimos 100 anos de educação de surdos, no Brasil, foram mais do que suficientes para aprendermos como não educar surdos e, também, como não formar educadores surdos. Sabemos da importância da língua como instrumento de comunicação, mas também de seu papel no desenvolvimento dos processos cognitivos. Temos consciência de que a língua de sinais tem o seu posto garantido de fato, embora muitas vezes ainda não de direito. Mas foram os fatos e não o direito que impuseram, quase sempre, as razões da verdadeira cidadania. Sabemos, também, da importância da aquisição da língua portuguesa. Mas ainda não está claro, para muitos dos profissionais de nossa área, que bilinguismo na educação não se confunde ou não se deve confundir com gramaticalidade, com a mera aquisição de duas línguas no espaço escolar.

Desta forma, um erro da comunidade ouvinte, principalmente aquela que se debruça sobre o trabalho da educação, é encarar o ensino como uma forma única, determinando que a inclusão seja apenas a adaptação do aluno surdo para o sistema tradicional de ensino, e não o contrário. Ou seja, o aluno surdo, apesar da inserção de um intérprete em sua escola, não possui um método de ensino eficaz e moderno que compreenda a diferença de compreensão de determinado conteúdo entre um surdo e um ouvinte. O método atual é equivocado, uma vez que não se faz justo e não é desenvolvido a partir dos olhos do aluno, mas sim dos olhos de quem ensina, e, na maioria dos casos, os indivíduos em questão não são da mesma comunidade.

Com isso, muitos profissionais da área educacional ainda mantêm fixo em pensamento e foco de trabalho de que o aprendizado da língua portuguesa para a comunidade surda (especialmente as crianças e os jovens) é, antes de tudo, mais importante do que a própria língua de sinais. A partir daí, há uma pressão e uma pressa sobre a criança em aprender a língua portuguesa, pois só assim conseguirá ser incluída em meio social, ultrapassando o seu desenvolvimento em libras. Entretanto, pesquisas científicas na área da linguagem, descritas, inclusive, no livro de Eulalia, comprovam que o desenvolvimento da língua espaço-visual como primeira língua para os surdos é tão importante quanto a língua portuguesa.

Segundo a teoria mais aceita sobre a aquisição de linguagem — o inatismo — , desenvolvida pelo linguista norte-americano Noam Chomsky, o indivíduo nasce com capacidades inatas para o desenvolvimento da linguagem, e cabe ao meio estimular esse potencial já existente. Dessa forma, uma criança ouvinte pode, aos seus 3 anos de idade, dominar a gramática de sua língua sem dificuldade e isso se deve ao impulso potencial de sua gramática dado pelo seu convívio com a sua comunidade que se utiliza da linguagem oral-auditiva para a comunicação. Com isso, o estímulo ao desenvolvimento de uma linguagem nos primeiros anos de vida é importante para o desenvolvimento dos processos cognitivos. O que pouco se sabe, ou se divulga, é que a teoria chomskyana , auxiliada por teorias que a tomaram como base para o desenvolvimento e confirmação do inatismo, também se aplica ao desenvolvimento cognitivo e linguístico para crianças surdas, pois elas desenvolvem espontaneamente um sistema de gesticulação manual por mais que elas não tivessem entrado em contato com a linguagem oral-auditiva ou espaço-visual. Para Chomsky, os princípios inatos que determinam a natureza do pensamento e da experiência, em sua maioria, podem ser ativados inconscientemente. Além disso, assim como uma criança ouvinte em seus três primeiros meses de vida pode balbuciar vocalmente como forma de desenvolvimento de sua comunicação, uma criança surda com pais surdos nos seus de vida realiza balbucios manuais como forma de comunicação, devido ao estímulo e ao convívio social que tem.

Portanto, a aquisição da língua de sinais como primeira língua ao surdo é a forma de oferecer a ele um meio natural de aquisição linguística, uma vez que não depende da audição para ser adquirida. Entretanto, todos os outros métodos de aquisição de linguagem ao surdo que não for a espaço-visual serão não-naturais e exigirão um esforço desnecessário podendo prejudicar o desenvolvimento da criança.

Noam Chomsky — linguista norte-americano

Eulália destaca.

(…) é preciso acrescentarmos que, do ponto de vista sociocultural, é direito do indivíduo surdo ter acesso ao instrumento linguístico característico da comunidade à qual naturalmente pertence. Cabe-nos ressaltar que atender às necessidades naturais e preservar os direitos do indivíduo são atitudes complementares em qualquer meio de educação. A língua oral-auditiva, que serve como meio de comunicação da comunidade ouvinte, deve ser aprendida como segunda língua, já preservado o domínio da língua de sinais que garante, a curto prazo, não só um meio de comunicação eficaz, mas, também, o instrumento de desenvolvimento dos processos cognitivos, indispensável nos primeiros anos de idade.

Fora do campo linguístico e educacional voltado aos surdos, um campo que é de grande dificuldade para eles é o campo de trabalho.

Com a crise econômica deixando mais de 11 milhões de brasileiros desempregados, a comunidade surda foi tão afetada quanto os próprios ouvintes. Sofrendo desde o início com a dificuldade de conseguirem um emprego, sendo por questões de preconceito ou pelo estabelecimento, empresa ou organização não estarem preparadas para lidar com um empregado com deficiência auditiva, atualmente eles contam com 9 milhões desempregados em um país que possui 25 milhões de pessoas surdas.

Como forma de garantir o acesso a um emprego pela pessoa com deficiência, o governo brasileiro, através da Lei n°8.112/1990, determinou que até 20% das vagas em cargos públicos através de concursos devem ser reservadas para indivíduos com deficiência. Um ano depois, a Lei de Cotas estabeleceu que uma empresa com mais de 100 funcionários deve contratar uma porcentagem obrigatória de trabalhadores com deficiência.

Entretanto, um estudo realizado com apoio da ABRH — Associação Brasileira de Recursos Humanos demonstrou que a maioria das empresas contratam pessoas com deficiência apenas para cumprir a Lei de Cotas, além de identificar que boa parte das empresas analisadas não possuem suporte e recursos para contratar trabalhadores com deficiência.

A FENEIS — Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos, com o intuito de diminuir o preconceito contra a pessoa com deficiência auditiva no mercado de trabalho e nos demais setores da sociedade, criou uma campanha #surdoehquemfala. Usando o termo “deficiência invisível”, eles demonstram que 9.7 milhões de pessoas no Brasil são marginalizadas devido à sua deficiência.

Dessa forma, devemos sempre enfatizar que o surdo não é surdo-mudo. Eles falam. Eles possuem uma linguagem e um sistema de comunicação. Eles podem e conseguem se comunicar e a sociedade tem a obrigação de ouvi-los e entendê-los, além de abandonar a ideia aristotélica de que eles não são treináveis por não conseguirem ouvir. A deficiência auditiva nada mais é do que uma barreira que qualquer um pode ultrapassar sendo surdo ou ouvinte. A escola e o mercado de trabalho devem ser inclusivos e entenderem que o aluno e o trabalhador surdo são pontos iniciais para uma reforma educacional e trabalhista que abandone o tradicionalismo e paute a modernização e aceitação das diferenças.

A comunidade surda tem o seu valor, e não é diferença de comunicação que vai e pode desmerecer isso.

Pedro Eduardo — Estudante de Linguística, apaixonado por cartuns, livros e debates. Professor de ironia com ênfase em falar alto.

--

--