Agelgil: mulheres e resiliência financeira na África

Críscia Cesconetto de Mesquita
Cambiatus
Published in
8 min readMar 19, 2022
Um agelgil é um recipiente etíope tradicional usado para manter os alimentos frescos e preservá-los em tempos de escassez e necessidade.

A Agelgil é mais uma das comunidades usando a Cambiatus para criar sua própria moeda, e é basicamente formada e liderada por mulheres da cidade de Adama, na Etiópia. A criação e evolução dessa comunidade tem uma história muito particular e especial tanto para as mulheres que participaram desse processo como para a nossa equipe. Vamos contar um pouco dessa história hoje.

A Etiópia e os grupos de autoajuda

Um dos países mais lindos do mundo, a Etiópia tem uma rica cultura e história. Localizada no “chifre” da África, sua economia cresce em torno de 6% por ano, mas ainda permanece sendo uma das nações mais pobres do mundo.

Com o objetivo de combater a pobreza, pessoas (em sua maioria mulheres) se reuniram no que chamam de grupos de autoajuda ou SHGs (sigla para Self Help Groups, em inglês). Esses grupos são compostos de, normalmente, entre 15 a 20 mulheres, que se reúnem todas as semanas para se apoiarem financeiramente e se encorajarem mutuamente.

Elas começam economizando pequenas quantias regularmente, e então contraem pequenos empréstimos do grupo a uma taxa de juros baixa. Os membros costumam usar o dinheiro para iniciar ou expandir seus próprios negócios e também recebem treinamento para pequenas empresas.

Essa abordagem dos grupos de autoajuda foi trazida da Índia e introduzida na Etiópia em 2002 e permitiu que várias mulheres de baixa renda pudessem sair da pobreza. Como resultado, elas praticam e exercem a governança local e revitalizam a solidariedade social enquanto promovem uma democracia de base e constroem um capital social.

Entretanto, a maioria dos SHGs carece de personalidade jurídica devido à ausência de um marco regulatório adequado, o que tem limitado seu acesso a empréstimos bancários e outros recursos e serviços públicos. Não bastasse isso, a chegada da pandemia da Covid-19 começou a desestabilizar a economia de várias nações, incluindo a Etiópia, e consequentemente, os desafios para os SHGs aumentaram. Nesse cenário, os SHGs contaram com uma ajuda “extra”, e foi aqui que entrou a Cambiatus.

Projeto piloto: o processo da Cambiatus como caminho para a resiliência financeira

Em 2020 foi iniciado o projeto de criação de uma moeda digital de inclusão para a comunidade de Adama, na Etiópia, com o objetivo de aprimorar a resiliência financeira dos membros dos grupos de autoajuda frente às adversidades econômicas, como a Covid-19. Esse projeto foi desenvolvido pela Code Innovation e Tearfund, subsequentemente financiado pela Start Network e implementado através da nossa plataforma, a Cambiatus. O objetivo do projeto foi explorar o uso de moedas complementares na blockchain como uma ferramenta para promover resiliência financeira e trocas entre membros dos SHGs, mesmo durante uma crise.

Cambiatus é uma plataforma de código aberto que facilita a criação de moedas complementares e negócios colaborativos usando a tecnologia blockchain.

O processo de construção de uma comunidade na Cambiatus é constituído de três passos básicos. O primeiro deles é a mudança de mentalidade. Nesse processo, são apresentadas ideias básicas relacionadas a dinheiro, moedas complementares e blockchain, baseadas em materiais digitais produzidos ou curados pela equipe da Cambiatus. O objetivo aqui é que a comunidade aprenda a ver e se relacionar com o dinheiro de uma forma diferente.

O segundo passo é o processo de co-desenho da moeda complementar. Essa é uma das etapas mais importantes, onde a comunidade discute o contexto em que vive e, guiada pela identificação dos seus propósitos, define ações e recompensas, bem como outros detalhes técnicos da moeda complementar.

E por fim, o terceiro e último passo é a implementação do co-desenho da moeda na prática e criação da comunidade no webapp da Cambiatus, onde os membros da comunidade serão capazes de trocar produtos e serviços usando sua nova moeda complementar.

Através desse processo, os membros dos SHGs descobriram que se beneficiariam de muito mais do que apenas sucesso financeiro. Os grupos foram capazes de construir relacionamentos mais fortes e de desenvolver mais confiança entre seus membros.

Membros de SHGs são tanto consumidoras quanto produtoras. Elas trocam bens e serviços entre si. A criação da comunidade, através do webapp da Cambiatus, oferece uma nova ferramenta para que eles consigam continuar e trocar seus produtos e serviços, mesmo quando o mercado está sofrendo por falta de dinheiro, como durante lockdowns ou por outros motivos.

Agelgil: da construção à produção, uma jornada colaborativa

Apesar das dificuldades econômicas, os membros dos grupos de autoajuda na Etiópia possuem uma riqueza cultural e de conhecimentos muito grande: todas elas tem algum produto ou serviço que possam oferecer em sua comunidade, desde sabedoria e habilidades a serviços e produtos que são necessários para outros membros. Era o cenário perfeito e favorável para a implementação de uma moeda complementar, principalmente porque elas demonstraram a vontade e a abertura para uma alternativa, para algo novo.

Mulheres fazendo parte do proceso de co-desenho da sua própria moeda: Agelgil.

Seguindo os passos para se tornarem uma comunidade na Cambiatus, mais de 60 membros de grupos de autoajuda participaram do nosso processo. Devido a algumas limitações ocasionadas pela pandemia do coronavírus, implementamos nosso processo em duas etapas. Primeiro a equipe da Cambiatus fez o treinamento remotamente com um grupo local da Tearfund Etiópia. E numa segunda etapa, esse time da Tearfund facilitou as sessões de treinamento com as pessoas membro dos SHGs presencialmente na Etiópia.

As pessoas que participaram do co-desenho aprenderam o que era o dinheiro, porque usam ele, e passaram a enxergá-lo de uma forma diferente.

A necessidade e a possibilidade de uma nova ferramenta ficou clara quando elas se depararam com a comparação entre pandas e ursos pardos, como explicado no livro “New Money for Sustainability”, de Ranulfo Paiva Sobrinho e Karla Córdoba-Brenes, fundadores da Cambiatus.

Pandas evoluíram baseando sua dependência alimentar quase que exclusivamente em bambu e isso os deixa vulnerável para qualquer perda de habitat, sendo isso uma grande ameaça para a sua sobrevivência. Assim também funciona com o dinheiro como conhecemos ele hoje, só existe um. Já os ursos pardos se alimentam de raízes, frutos diversos e nozes, tendo assim mais possibilidades de diversificar sua alimentação, tendo uma chance de sobrevivência muito mais do que os pandas. O dinheiro pode ser muito mais do que a moeda como a conhecemos.

O dinheiro é um acordo, dentro de uma comunidade, para usar um item padronizado que sirva, pelo menos, como um meio de troca. Do livro “New Money for Sustainability” inspirado no trabalho de Bernard Lietaer.

O dinheiro pode ser fundamentado na confiança e na decisão de uma comunidade, podendo servir para vários propósitos e vir em diferentes variedades. E são essas variedades que trazem maior resiliência para as comunidades.

Tendo esse conceito em mente e com a ajuda da Cambiatus, as sessões de treinamento foram adaptadas para o contexto da Etiópia, primeiro preparando as ferramentas e traduzindo para Amárico (a língua oficial na Etiópia) tudo o que era necessário para garantir o acesso a todos os membros participantes do processo. Após o primeiro passo, de mudança de mentalidade, vários workshops aconteceram a fim de dividir as ideias e conceitos aprendidos sobre dinheiro para os membros dos grupos de autoajuda, durante os quais eles fizeram o co-desenho da moeda.

O aplicativo da Cambiatus em Amárico

A Cambiatus oferece a estrutura do webapp, mas foi a comunidade quem decidiu seus objetivos e ações para promover a troca de serviços e produtos entre seus membros. A comunidade decide tudo sobre a moeda e como ela funciona, como por exemplo o nome, o símbolo, o valor, as recompensas, como verificar ações e como e quando oferecer produtos e serviços.

A moeda complementar criada é chamada de Agelgil. Um agelgil é um recipiente etíope tradicional usado para manter os alimentos frescos e preservá-los em tempos de escassez e necessidade. Também é usado para transportar alimentos enquanto trabalha no campo, como se fosse uma marmita. Nele é possível carregar alimentos com você, além de também poder compartilhá-los com outras pessoas. Este foi o nome escolhido para a comunidade piloto na Etiópia e o símbolo escolhido para sua moeda complementar, o AGL.

¨Gosto muito dessa ideia. Imagino que todos os SHGs em Adama se conectem e troquem seus produtos de uma maneira melhor.¨ Sra. Demebelal, SHG Member

Nesse sistema, um agelgil é equivalente a um Birr (moeda oficial na Etiópia) e é usado como uma referência para que os membros da comunidade coloquem os preços nos seus produtos e serviços. Todas as compras e vendas na loja, no webapp da Cambiatus são feitas usando AGL. Os membros da comunidade podem acessar o webapp por telefone celular, laptops e tablets, desde que tenham uma conexão com a internet. Especial atenção podemos dar aqui a nossa equipe interna de desenvolvedores da Cambiatus, que enfrentou alguns desafios e trabalhou forte e incansavelmente para otimizar o webapp, fazendo com que ele ficasse ainda mais acessível para garantir uma boa performance mesmo em situações de internet escassa ou limitada. Como resultado conseguimos obter um webapp com navegação mais leve, facilitando e melhorando sua usabilidade.

Quando o piloto da moeda foi lançado, em Abril de 2021, aproximadamente 100 pessoas usavam ele. Hoje, já em produção, oficialmente a comunidade Agelgil na Cambiatus conta com cerca de 170 pessoas membros. Eles acreditam que o webapp facilita a ligação com outros grupos de autoajuda e, ao mesmo tempo que aumentam suas possibilidades de troca de produtos e serviços oferecidos dentro da comunidade, desenvolvem também o seu potencial de mercado.

A visão da Cambiatus sobre o processo de criação da Agelgil

Todo o processo de criação da comunidade Agelgil em particular, foi muito novo e desafiador em vários aspectos, desde implementar uma tradução para uma língua que não dominamos, até ter que repensar a maneira como facilitamos o co-desenho de uma moeda complementar remotamente e treinando facilitadores para replicar a nossa metodologia. Essa experiência nos permitiu reformar nossos processos de mudança de mentalidade e co-desenho para poder adaptá-los ao público local e fornecer as ideias e ferramentas de que eles precisavam.

A colaboração multicultural e abertura que tivemos dos participantes do processo foram fundamentais para que alcançássemos o sucesso que temos hoje: uma nova alternativa e o alcance da resiliência financeira tão desejada. Um mundo com novas possibilidades não só para as pessoas membros, mas para a comunidade em si também.

Mais sobre a Agelgil

Visite a página da comunidade no site da Cambiatus aqui e aprenda mais sobre essa comunidade.

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Críscia Cesconetto de Mesquita
Cambiatus

Bióloga, Fotógrafa e Criadora de conteúdo. “Vida plena, coração leve”