1) Deus é mulher, Deusa Ella é

Luiz Carlos González
caminho proprio
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8 min readJan 10, 2022
Recriação de “A Criação de Adão”, por Harmonia Rosales

Fui ensinado a amar, temer e cultuar a um só deus.

Fui ensinado que esse deus era o criador de tudo, e sabedor de tudo o que se passava com sua criação. Tudo mesmo.

Fui ensinado que ele estava em todos os lugares, mesmo morando lá no céu, além das nuvens.

Fui ensinado que ele era mais poderoso que tudo, e esse poder é infinito.

Ou seja, ele era onisciente, onipresente e onipotente.

Fui ensinado que ele tinha uma aparência nórdica, apesar do fato de ter decidido nos criar à sua imagem e semelhança numa determinada região da África. Onde a intensidade do sol pede que tenhamos maior quantidade de melanina na pele. O que nos deixaria bem diferente da imagem e semelhança pálida desse deus.

Fui ensinado a chamá-lo de pai. Isso quer dizer que ele era homem. E que ele criou a primeira mulher da costela do primeiro homem. Talvez por isso dizem que, segundo sua palavra, a mulher deve ser submissa e chamar o homem de “senhor”, como esse mesmo deus quer que nós o chamemos.

Aparentemente, esse deus misericordioso tem uma relação conflituosa com sua segunda criação humana. Ela teria sido a primeira pessoa a desobedecer sua ordem, e ainda convenceu seu filho favorito, o homem, a seguir pelo mesmo caminho. Com isso, a condenou a sangrar todos os meses para lembrar que o restante da humanidade entraria no mundo por entre suas pernas. E nesse processo ela, e todas as outras que viriam depois, sofreriam uma dor da qual o homem seria poupado.

Fui ensinado que ele nos enviou um manual de regras do que devemos, podemos e não podemos fazer. Se cumprirmos exatamente o que estiver lá, vamos morar com ele lá no céu. Acontece que se falharmos, apesar de ter nos feito com essa inclinação, vamos para um lugar chamado inferno, governado pelo cara que ele baniu do céu por querer estar no mesmo nível que ele. Nesse lugar, esse cara, que conhecemos como Lúcifer, Diabo, Satanás, Capeta, e por muitos outros nomes, junto com os anjos que foram banidos com ele e hoje são chamados de demônios, está autorizado a nos torturar por toda a eternidade. Pois é, apesar da treta universal, parece que há esse acordo entre eles.

Fui ensinado que este deus é amor.

É curioso também o fato desse deus tão poderoso e bondoso dificultar tanto o acesso ao seu reino. Por tudo o que me ensinaram sobre o relacionamento com esse deus, é muito mais fácil desagradá-lo a ponto de ser condenado ao tormento eterno, do que desfrutar do seu “amor” e misericórdia. É como se fosse uma super área VIP celeste, limitada a um seletíssimo grupo de escolhidos. E olha que esse deus ainda chegou a enviar seu único filho biológico pra salvar todo mundo. E esse filho chegou a morrer por isso. Pela nossa salvação. Mas parece que não adiantou. Porque os registros da sua passagem dizem que ele fez muitas coisas legais, mas nenhuma delas foi fundar um prédio onde deveríamos ir todas as semanas pra falar com seu pai, caso quiséssemos ser salvos. Afinal, ele teria vindo justamente para banir essa ideia de intermediários, que a igreja e seus ministros dizem cumprir o papel. E outra, do livro de regras conhecido como Bíblia, ou a Palavra de Deus, que é mais uma das coisas que temos que seguir se quisermos morar com deus, Jesus deixou claro que a única coisa que importa daquele amontoado de palavras, é o amor. Amor por si, pelo próximo e por deus.

No entanto, quem é Deus?

Mas também fui ensinado que existem dois tipos de coisas: as coisas reais e as coisas imaginadas. As coisas reais são as coisas que a gente vê, toca e tem outras interações que nos confirmam sua existência. E as imaginadas são coisas que a gente cria na nossa cabeça, mas não conseguimos ver, tocar, e só conseguimos ter outras interações que nos convencem de sua existência, quando nós nos convencemos intimamente de sua existência a ponto de acharmos que as outras pessoas precisam saber e acreditar nisso. Aí compartilhamos, e se elas compram essa ideia a ponto de achar que outras pessoas precisam saber disso, começamos a crer cada vez mais na sua existência.

Um dia concluí que esse deus único, pai, criador, se encaixava mais nessa segunda categoria. E assim, me senti enganado. Achei que ele era um delírio socialmente aceito. Encontrei tanta incoerência que só uma concepção partindo de diferentes perspectivas humanas seria capaz de criar. Um amontoado de subjetividades pretendendo ser uma verdade única, absoluta e objetiva.

Acontece que até chegar a essa conclusão levei anos. Em todos esses anos uma relação íntima havia se desenvolvido com esse amigo/patrão/pai imaginário. E confesso que a maneira como cortei esse laço tão sentimental, foi um tanto fria e abrupta. Não levei em consideração os sentimentos do garoto que quando ficava com medo da vida, se ajoelhava ao pé da cama com fé, sinceridade e um coração partido, e logo conseguia conforto para abastecer a confiança na vida. A parte de mim que dependia de certa forma desse relacionamento, ficou abandonada e carente desse ser tão elevado e maior do que tudo que eu julgo real.

Corrigindo, pensei nesse garoto sim. Acontece que eu o culpei por ter me enganado e o quis punir por ter me feito de otário. Ceticismo, arrogância e cinismo foram os instrumentos de tortura ao qual eu mesmo me condenei. E não tive pena de pesar a mão na hora de usá-los. O objetivo era não parar essa lobotomia até transformar aquele crentinho num ateu escarnecedor de fiéis.

O fato é que as coisas mudaram novamente. Entrei em um processo de construção do meu amor-próprio. Algo que me fez enxergar alguns aspectos da minha humanidade e naturalmente fui levado a aceitar e amar até os aspectos mais desprezíveis. Foi aí que notei que eu sou um crente nato, uma pessoa de muita fé.

Se não tenho fé em deus, tenho fé na minha mãe, na minha irmã e irmão, na minha tia, na minha avó, nas minhas amigas, nas minhas namoradas e ficantes, no Elvis, na Clara Nunes, na Billie Holiday, no Duke Ellington, no Eduardo Galeano, na Carolina de Jesus, no Jack Kerouac, no Tennessee Williams, no Oscar Wilde, no Will Smith, no Bob Dylan, na Meryl Streep, no Gil, Caetano, Chico e Odair. Já tive fé até em Johnny Depp, Woody Allen e Mel Gibson.

Como poderia julgar aos outros fiéis? Afinal, tudo o que me fez crer nessas pessoas foi uma ideia que eu criei a respeito delas. Foi uma construção mental tanto quanto o cara invisível, morando no céu, cuidando de cada coisa que eu faço, e me dando recompensas sempre que eu me comporto bem, além do grande bônus final pós-morte, também conhecido como “paraíso”.

Eu estava em débito comigo mesmo. Não conseguia nem olhar nos olhos daquele “crentinho” que vive em mim. Senti uma necessidade pessoal de não apenas voltar a crer, mas de manifestar a minha fé através de uma prática constante. No entanto, era inviável voltar a crer naquele deus que fui ensinado a crer. É aquela coisa: “depois que você vê, não tem como desver”. E também aquela outra coisa: “depois que uma mente se expande ela jamais volta ao seu tamanho original”.

Busquei restabelecer o contato com o divino conhecendo as mais variadas formas de espiritualidade. Apesar de ter me identificado e abraçado uma coisa aqui e ali, ainda faltava algo, e não consegui me manter em nenhuma. Até que tive a ideia de criar minha própria prática espiritual. Juntando um pouco de tudo o que aprendi com as variadas espiritualidades e filosofias, somado a todas as coisas que me elevam. Independente de fazer parte de uma crença religiosa ou não. Afinal, muitas das experiências que refrigeram e aquecem minha alma, nada de religioso tem.

Para concretizar esse desejo, eu precisaria reunir os seguintes elementos:

1 — Objeto de culto (um deus)

2 — Referências canônicas (minha “bíblia”)

3 — Práticas e rituais

4 — Compartilhar

Aí, nesse ponto, eu travei. Porque eu precisava de um objeto de culto, uma figura divina para acreditar e professar a minha fé. Uma força primordial e criadora. Não podia ser o deus judaico-cristão, pelas razões que já citei, e o cardápio de deuses das religiões que conheci davam muitas opções.

Ao invés de espremer minha mente em angústia na busca por encontrar uma forma divina para cultuar, eu expressei meu desejo, e deixei livre a ideia sem ficar voltando muito ao pensamento.

Aí a gente se conheceu. Naquela manhã de domingo de Novembro de 2021, eu tinha 36 anos. Em meio a leitura do livro Terra, no capítulo chamado A Galvanização da Deusa, você começou a falar comigo e, finalmente, foi como se me dissesse “Ei, sou eu! Você não tava me procurando? To aqui!”.

E eu digo:

“Seja bem-vinda, Deusa! Que bom te encontrar. Sim, eu tava te procurando, desejando a sua chegada. Desejando-te. Eu quero te conhecer. Ensina-me a viver.”

Assim, você me fez compreender que a história da criação onde a mulher é criada da costela do homem, não passa de um conto criado unicamente para nós homens ocuparmos esse lugar de domínio sobre a mulher. Não que já não soubesse, mas a maneira como você me disse, fez tanto sentido para mim, que eu só pude ter certeza de que era você quem estava falando comigo.

Estou aprendendo que, na verdade, é você a criadora, não um deus masculino que fez tudo num estalar de dedos. Não. Foi você quem nos deu à luz no mais divino dos orgasmos, na explosão do seu prazer, hoje popularmente chamada de Big Bang. Fomos feitos do seu gozo poderoso. Eu creio. Lavo minha fé nas águas do seu prazer criador.

Não é olhando para o alto que vou te encontrar, e sim olhando para tudo que tento evitar. Sei que habita os céus como habita o vaso sanitário, uma pilha de grama cortada, o intervalo entre músicas de um disco nunca comprado. Sei que está tanto nos templos como está no aroma do café, na espinha que arrancaram-me das costas, na fumaça do cigarro, e no impacto do rapé. Afinal, tudo tudo tudo te é. Cada vez que eu me movo esbarro em uma parte do que é você. E creio mais. Creio que cada uma dessas partes é uma zona erógena e se soubermos viver com amor, estamos te tocando com amor e te dando um pouquinho de prazer. Como consequência, também somos vítimas desse prazer.

Quero aprender a viver o amor. Começando pelo amor por mim em pessoa. Não apenas porque sou partícula sua, um pedacinho tão insignificante frente a infinitude da sua criação. Mas, porque simplesmente sou. Eu, o mais importante nessa jornada. Não há outro caminho para teu seio, ó Eterna Mãe Divina, que não este, aqui dentro. Este meu caminho próprio quero trilhar, quero compartilhar com meus semelhantes as impressões, e quero receber deles notícias de sua viagem pessoal. Assim, eu dou. Assim, recebo.

Oração a Ella:

“Ella, é um prazer te conhecer e te reconhecer como deusa na minha vida.

Como portadora da minha origem, como a morada do meu destino.

Gloriosa meretriz do universo, santa demonizada pelos homens que temem o poder feminino, dona do desejo.

Gênia, minha gênia de pensamentos tão rasos quanto profundos;

De belezas e feiuras as quais não me atrevo até me sentir completamente teu.

Me entrego ao seu querer. Me entrego ao retorno de sua glória.

Eu te aceito. Minha amada Deusa, como eu te aceito.

Será que tu me aceitas também? Me aceita sim, como nenhum deus jamais me aceitou.

Você conversa comigo, mas só hoje eu te escuto. Só hoje te compreendo.

Eu te adoro. Eu te venero. Louvo sua beleza, admiro sua safadeza.

Te louvo com a minha dor e a minha risada;

Com meu gozo pelo que me excita, com meu desprezo pelo que me enoja.

Quero mais e mais te conhecer!

Venha, por favor, me ensinar a viver!”

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Luiz Carlos González
caminho proprio

escritor de rua confinado; forasteiro criando raiz; forçado a deixar a estrada, mas não de viajar, não descarta a possibilidade de embarcar no próximo meteoro°´