Política

Camiseta (des)amada

Entenda por que a esquerda brasileira deixou de usar a camisa da seleção de futebol

Gustavo Pinheiro
Caminhos em Rede

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A “amarelinha” é a marca que sempre representou o orgulho do cidadão brasileiro por sua seleção de futebol, além de ser um dos símbolos nacionais junto com o hino e a bandeira. Porém, há alguns anos, ela também começou a ser símbolo da polarização brasileira. Em 2014, com os movimentos Vem pra Rua e Acorda Brasil, a camiseta amarela apareceu nas manifestações que pediam o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Depois, passou a ser peça importante nas discussões da tensa eleição de 2018 que levou Jair Bolsonaro ao poder. O uso da camiseta canarinho por grupos de direita política provocou a sensação de que a camisa amarela não representa mais todos os brasileiros.

Protesto pró-impeachment da Presidente Dilma Rousseff,em Brasília, no ano de 2016, dominado pela cor amarela (Foto:edusma7256 / Shutterstock.com)

Muitos defensores dos governos de esquerda, e até pessoas sem posicionamento político definido, não querem mais sair às ruas vestidos com o uniforme da seleção por conta desses protestos, quando os manifestantes começaram a sair vestidos de verde-amarelo e a camisa da seleção passou a significar uma adesão aos movimentos de quem era contra a esquerda e a favor de Bolsonaro. “A ideia por trás desse uso é o patriotismo, que inclusive até hoje é uma das bandeiras do Bolsonaro, mas eu não consigo mais enxergar como se fosse só a camisa do Brasil, foi adicionada ali uma conotação política que para mim estragou completamente o significado e não tenho a menor vontade de comprar ou usar”, critica Vinicius Zawacki, estudante de Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Nicholas Luz, graduando de Engenharia Química da UFRGS é outro incomodado com a situação, já que para ele a paixão pelo futebol era justificativa para usar o manto da seleção. Contudo, o estudante acredita que o declínio do esporte brasileiro e a ascensão da direita usando o uniforme como sinal de patriotismo, acabou afastando da amarelinha quem é contrário aos ideais desse grupo. Porém, para a professora do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFRGS e especialista em comunicação política Jennifer Azambuja de Morais, a camisa perpassa o futebol e acabou sendo símbolo maior da direita por um simples motivo: ao se querer demonstrar o sentimento de nacionalidade e patriotismo, o símbolo mais fácil de se encontrar nas casas brasileiras, muito mais do que bandeiras do país, foi a camisa da seleção.

Seguindo o raciocínio de Jennifer, o publicitário da Agência Lumika Vitor Giongo acredita que a apropriação aconteceu muito mais pela cor amarela estar presente na bandeira nacional, do que pelo uniforme do esquadrão, já que o uso inicial visava diferenciar os manifestantes dos partidários de esquerda, historicamente ligados a cor vermelha. Dessa forma, o amarelo seria um símbolo até maior do que a própria camiseta ou do que a própria simbologia do uniforme da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). “Mas, ainda assim, eu acho terrível como nação, nós termos pessoas que acham que um símbolo que é de todos deva ser só de um lado político”, completa Vitor.

ORIGEM DA CANARINHO

Detalhe do atual uniforme da seleção brasileira (Foto: ninopavisic / Shutterstock.com)

Rótulos surgiram sobre quem veste amarelo ser “bolsominion” (termo utilizado para satirizar apoiadores do atual presidente da República), e quem é contra a camisa da seleção ser “esquerdalha” (expressão pejorativa para pessoas com orientação política de esquerda), mas antes de qualquer definição quanto a esses rótulos, primeiro é preciso entender como se formou a simbologia da camisa amarela. Após o fiasco do Maracanazo em 1950, quando o Brasil perdeu a final da Copa do Mundo para o Uruguai, a camisa branca — usada até então — virou sinônimo de azar. Com isso, a Confederação Brasileira de Desportos (CBD, atual CBF), em parceria com o jornal carioca Correio da Manhã, realizou um concurso para escolher o novo uniforme. Cerca de 200 desenhos foram enviados, e o vencedor foi o escritor e desenhista gaúcho Aldyr Garcia Schlee, que sugeriu o modelo que é conhecido hoje.

Não demorou muito e a vitoriosa história do Brasil em Copas do Mundo começou a ser escrita, conquistando seu primeiro título em 1958 na Suécia, curiosamente vestindo, por conta de um sorteio, o segundo uniforme, de cor azul, no jogo final contra a dona da casa. O manto amarelo passou a adquirir valores de um Brasil vencedor, capaz de mostrar sua grandiosidade ao mundo, tendo alcançado ao máximo a identificação da vitória no futebol com o amor à pátria durante a ditadura militar, especialmente com o general Emílio Médici, que usou da vitória da Copa do Mundo de 1970 para “normalizar” o período mais repressor do governo dos militares.

“Você acha que eu ficaria encantado, maravilhado de ver a camiseta servindo para a exploração política? Eu não fiquei decepcionado, eu estou decepcionado. Quero que se arrebentem, a camisa e os canalhas que a usaram dessa maneira”

Aldyr Schlee, criador do uniforme da seleção brasileira.

O pai da vestimenta, Aldyr Schlee, faleceu em novembro de 2018, por coincidência, dias após Jair Bolsonaro ser eleito presidente do país. Em entrevistas antes de sua morte, ele demonstrava descontentamento com o novo uso de sua criação, acusando “movimentos antidemocráticos” de terem tomado indevidamente o uniforme. “Você acha que eu ficaria encantado, maravilhado de ver a camiseta servindo para a exploração política? Eu não fiquei decepcionado, eu estou decepcionado. Quero que se arrebentem, a camisa e os canalhas que a usaram dessa maneira”, disse em entrevista para Uol em janeiro de 2018.

DESAPROPRIANDO A APROPIAÇÃO

A volta do uso do uniforme brasileiro com a justificativa do patriotismo depois de 35 anos do fim da ditadura militar está ligada a circunstâncias históricas que sempre estão em contato com esses símbolos nacionais, acredita a professora titular na Faculdade de Comunicação da UFRGS Ana Cláudia Gruszynski. “Isso é cíclico, a disputa pelas imagens, pelos signos, é sempre uma disputa de poder. Toda imagem tem uma história e uma cultura, o ícone da suástica, por exemplo, já teve um significado extremamente positivo e, após ser adotado por certos grupos, foi mudando com o tempo através de convenções sociais”, afirma a professora.

O uso da camiseta e do futebol também trazia uma ideia de identidade nacional durante o tempo da ditadura militar, que evidentemente ainda está presente em elementos que vemos atualmente, mas que representam um outro contexto histórico, entende Ana, que é também designer gráfica. O uso da camisa como referência ao governo perdeu força com o fim do regime militar, mas afinal, como isso pode vir a ocorrer hoje em dia?

“Para a camisa voltar a ser de todos, primeiro é preciso que acabe a polarização política, mas com certeza vai ficar essa mancha do uso bolsonarista”, acredita o publicitário Vitor. Já as professoras da UFRGS não são tão otimistas assim, segundo Ana não é possível se ter uma previsão nem ideia de como uma mudança pode vir a ocorrer, assim como anos atrás não se tinha ideia que Bolsonaro iria se eleger. Jennifer cita que outros símbolos que já foram utilizados e depois esquecidos. “Essa é uma pergunta sem resposta, com a camisa também pode acontecer de se esquecer, mas é necessária uma campanha forte ou o passar do tempo”, completa a especialista em comunicação política.

Protesto durante a pandemia de Covid-19 na Avenida Paulista (Foto: Forrest Walker / Shutterstock.com)

Outras pessoas acreditam em ações mais imediatas para combater a apropriação. É o caso de Maurício Heberle, funcionário de TI da Sicredi, que acha que o uso do uniforme azul da seleção é uma forma de recuperar o símbolo. O estudante de direito Vinicius Zawacki pensa que o uso, pelas as pessoas contrárias ao presidente, da figura da bandeira nacional em seus nomes nas redes sociais também ajudaria para o enfraquecimento desse signo, muito ligado a apoiadores de Bolsonaro. No meio de tantas discussões e dúvidas, é fato que, por mais negativo que seja esse sequestro da simbologia da amarelinha, a camiseta deve representar a todos, não apenas uma parcela dos brasileiros.

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