Pandemia

Docência desenfreada

Com jornadas de trabalho mais longas e cansativas, educadores enfrentam desafios técnicos e emocionais para enfrentar a pandemia

Sophia Maia
Caminhos em Rede

--

A pandemia do coronavírus, que provocou o isolamento social de parcela considerável da população mundial, obrigou diversos profissionais a reinventarem o seu modo de trabalho. Uma das categorias mais afetadas por essas mudanças foi a dos professores. Trabalhadores que tinham como principal tarefa repassar os seus conhecimentos para os alunos através de suas próprias vozes, corpos e expressões, agora dependem de aparelhos e plataformas eletrônicas para se ajustarem ao novo modo de ensinar. Após o árduo período de adaptação, educadores agora sofrem com a sobrecarga de trabalho e, consequentemente, com a exaustão.

Sobrecarga e cansaço

“O meu tempo hoje é 100% para o meu trabalho”

Luciane Fraga, professora

Uma pesquisa realizada pelo Sindicato dos Professores do Ensino Público do Rio Grande do Sul (Cpers), analisada pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), que contemplou profissionais de 872 escolas de 282 municípios, constatou que 98% dos professores estão trabalhando com carga horária superior à contratada. Esse é o caso de Luciane Fraga, professora de história há 15 anos, que atualmente leciona em uma escola estadual em Guaíba, na região metropolitana de Porto Alegre. Ela conta que não tem mais o tempo livre que tinha antes: “Hoje, eu não tenho horário para nada. Acordo, tomo café e vou para o computador. Saio do computador, almoço, volto para o computador, e assim vou até tarde da noite”. Luciane diz que não tem mais vida social. “Não consigo ter a disponibilidade que eu tinha para assistir alguma coisa, conversar com os meus filhos, ou os ajudar em atividades na escola. Eu não consigo fazer nada disso. O meu tempo hoje é 100% para o meu trabalho”, relata a professora.

Longas jornadas de trabalho assolam os profissionais da educação / Foto: Sophia Maia

Assim como ela, diversos professores estão passando por situações semelhantes. Gustavo Tricot afirma que, logo no início do período de isolamento, a situação foi muito difícil. Segundo o professor de história e filosofia do sistema educacional do Estado na cidade de Canoas, também na região metropolitana de Porto Alegre, a falta de definição sobre o que iria ser feito era um fator estressante. Agora, com a orientação adequada das escolas, o trabalho é menos complicado. Ainda assim, é uma rotina muito cansativa. “É uma lógica completamente diferente da que estávamos acostumados, e uma rotina muito extenuante. Eu fico o tempo todo recebendo demandas e pedidos. A direção da escola me pergunta se os alunos estão ou não fazendo as atividades, se alunos em particular estão correspondendo”, completa.

Saúde mental em segundo plano

Não surpreendentemente, toda essa sobrecarga está comprometendo a saúde mental dos professores, que ficam sem nenhum tempo para o próprio lazer. Além desse fator, também relatam a frustração por estarem se desdobrando de várias maneiras. Precisam, por exemplo, dar aulas síncronas e, ao mesmo tempo, preparar diversos materiais para uso assíncrono. Mesmo assim, obtêm pouco retorno dos alunos: “Na rede estadual, eu devo ter 150 alunos, e estou conseguindo retorno de menos de 50. A gente faz todo um esforço pensando na quantidade grande de alunos, e eles não têm participado das atividades na mesma medida em que a gente acredita que seja o ideal”, comenta Gustavo. No entanto, ele diz ter consciência de que o motivo da maioria dos alunos não acompanhar as aulas é a falta de acesso à tecnologia.

Além disso, educadores estão esbarrando em vários obstáculos que acabam os desapontando. Segundo Luciane, muitos de seus alunos trabalhavam de modo autônomo e não conseguiram continuar trabalhando durante a quarentena, o que causou dificuldades financeiras. “Como eu vou querer que o meu aluno estude se o ‘mínimo do mínimo’, que é alimento, ele não tem?”, lamenta.

A professora diz que, desde a capacitação dos professores para as aulas online, a Secretaria de Educação do Estado (Seduc) não tem se preocupado com a saúde mental dos profissionais. Logo que as aulas remotas foram anunciadas pela Seduc, cursos preparatórios foram divulgados como obrigatórios. Ou seja, além dos profissionais estarem se adaptando aos materiais novos para as aulas, também eram obrigados a fazer cursos, mesmo sem ter o tempo necessário para tal. “Acho que os cursos trouxeram conhecimentos válidos, mas não precisava tanta pressão. Era uma demanda tão grande de novas coisas, informações sobre o vírus por todo o lado, e ainda assim tínhamos que estar disponíveis para fazer os cursos, sob pena de desconto em folha. Pelo menos os cursos não precisavam ser feitos de maneira síncrona, então eu os fazia durante a madrugada, que era o meu único horário disponível no meio daquela loucura toda.”

Plataformas digitais estão sendo aliadas à difusão de conhecimento / Foto: Sophia Maia

O plano de saúde dos funcionários estaduais não cobre psicólogos, o que limita muito a procura por ajuda. Lui Peretti, um dos diretores do 34º núcleo do Cpers, declara que, enquanto núcleo, o sindicato tem convênios com alguns psicólogos que dão descontos em consultas. Mesmo dessa forma, infelizmente, ainda há barreiras, já que o salário da categoria é baixo e na maioria das vezes outras coisas são prioritárias.

Mas a saúde mental não pode ser negligenciada. A psicóloga Simone Abdalah, de Guaíba, conta que está atendendo quatro professoras do ensino público. Todas procuraram seus serviços durante a pandemia, buscando ajuda para lidar com o medo, o stress e com uma ansiedade muito grande, que já estava quase desencadeando uma síndrome do pânico. Ela afirma que o cenário de solidão criado pela pandemia é muito perigoso e se agrava ainda mais quando atrelado a muitas horas de trabalho, com pouco tempo para descanso. Tudo isso, a longo prazo, pode desencadear doenças como depressão, síndrome do pânico e fobia social.

A profissional ainda pontua que é importante que os professores que não têm condições de pagar psicoterapia busquem outras alternativas de aliviar a ansiedade, como fazer atividades físicas ao ar livre, por exemplo, mas sempre seguindo as medidas de distanciamento social. Também é importante ter uma rede de apoio com outros profissionais da educação.

Enquanto isso, os professores vão fazendo o que podem. Tanto Luciane quanto Gustavo afirmam não se sentirem confortáveis para um retorno presencial no momento. “Eu queria que este ano acabasse, e, no ano que vem, a gente se organizasse e voltasse para a escola. A nossa escola tem somente uma servente, para 11 salas de aula. Como ela vai dar conta de limpar 11 salas após as aulas e fazer toda a higienização que é solicitada pelos protocolos? Impossível”, relata o professor. Sem previsão para a normalização da situação da pandemia, é preciso que haja responsabilidade com medidas de flexibilização, pensando sempre na realidade da educação pública do país.

*A Seduc foi procurada durante a produção desta reportagem, no entanto não deu retorno.

--

--