Educação

Luta e Resistência

Entenda quais têm sido os feitos e os desafios encarados para abordar a Lei 10.639/2003, que prevê o ensino da história e cultura afro-brasileira nas instituições de ensino

Melany Pereira
Caminhos em Rede

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“Quem achar que tudo vai ocorrer tranquilamente está enganado, é luta e resistência como sempre foi”, afirma o professor Vander Duarte sobre a aplicação da Lei 10.639/03, que, desde 2003, estabelece como obrigatória a temática “História e Cultura Afro-brasileira” no ensino fundamental e médio, em escolas públicas e privadas de todo país.

Com as tensões ocorridas no primeiro semestre de 2020, após a morte de George Floyd por um policial branco nos Estados Unidos, o professor de história Vander criou uma conta no Instagram (@prof.vanderduarte) por enxergar nas redes sociais um local de fortalecimento dos coletivos. Lá, ele dá dicas de leituras e filmes e propõe reflexões referentes às questões raciais e à aplicação da lei. O professor atualmente leciona no cursinho pré-vestibular Fênix, de Porto Alegre. Ele conta que sempre tenta fazer, em sala de aula, comparações entre as culturas. “Durante toda história, a gente pode fazer uma relação com a cultura e história africana. Na própria Grécia e em Roma tu tens elementos de África, tu tens uma cópia da cultura egípcia. Há uma dificuldade de algumas pessoas discutirem isso, muitos não querem, alegam que isso não está escrito no livro.” Acrescenta, ainda, que isso é trabalhar a lei, explicar que os livros foram escritos por europeus, que pretendem desassociar da África os fatos históricos.

“Eu vivo a cultura afro-brasileira em todos os sentidos, já joguei capoeira, sou de religião matriz-africana, toco samba.”
-Vander Duarte, professor de História.

Além disso, Vander leva para sala de aula sua vivência e, dessa forma, consegue dialogar com adolescentes. “Eu vivo a cultura afro-brasileira em todos os sentidos, já joguei capoeira, sou de religião matriz-africana, toco samba, pesquiso a cultura desde sempre. Então, fica mais fácil para mim poder trabalhar com esses elementos”, afirma.

O inciso primeiro da lei prevê a inclusão no conteúdo programático dos seguintes estudos: a História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à história do Brasil. Já o inciso segundo diz que os conteúdos deverão ser ministrados no âmbito de todo currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística, literatura e história.

A professora do ensino fundamental e médio do município de Alvorada Amanda Oliveira diz que possui total liberdade para abordar os assuntos relacionados à lei dentro das instituições que trabalha. Entretanto, expõe a dificuldade dos pais e dos alunos do ensino fundamental em compreenderem a importância desse assunto na formação social e histórica. “Não somente do nosso país, como também da vida deles”, diz. Exemplifica com uma situação ocorrida no sexto ano, em que um aluno negro se recusou a estudar a cultura afro-brasileira, como o candomblé, pois não queria saber sobre ‘exu’ e ‘escravidão’. A mãe dele, ao falar com a professora, assumiu, um pouco envergonhada, serem cristãos. Por saber que isso não impede o ensino da cultura afro, a professora, ao lado da direção, explicou para família a importância de estudar os mais diversos assuntos, citaram a 10.639/03 e prosseguiram com os estudos.

“Se reconhecer no outro e saber que existe sim diversidade em tudo que é canto.”
-Amanda Oliveira, professora do ensino fundamental e médio.

Já no ensino médio, a professora relata que, em um debate de sociologia, um aluno levantou a seguinte questão: “Se os negros não podem ser rotulados de ladrões, porque então eles são a maioria dos presos no Brasil?”. A partir dali, os estudantes questionaram-se sobre estereótipos e levaram para sala de aula dados das prisões brasileiras e porcentagens de negros, pardos e brancos. Amanda assume que há uma dificuldade em lidar com as situações de estranhezas e vergonha que muitos alunos têm de se reconhecerem dentro da história afro-brasileira, mas entende que esse é o papel da escola e do professor. “De trazer a informação, e o conhecimento ser criado nestes reconhecimentos e estranhamentos mesmo. Se reconhecer no outro e saber que existe sim diversidade em tudo que é canto”, declara.

EDUCAÇÃO FÍSICA E A LEI

Gabriela Nobre, professora de Educação Física da rede municipal de Porto Alegre e doutoranda em Ciência do Movimento na UFRGS, expõe que a lei está longe de alcançar sua exatidão. Ela explica que existe um discurso, mas que não é posto em prática. “Falo especificamente da Educação Física, continuamos atrelados aos esportes, muitas vezes não vamos pensar a cultura corporal de movimento do nosso aluno para além daquilo. E muito pouco discutindo questões de preconceito e de racismo”, declara. Gabriela fala da existência de algumas ações, porém pontuais de professores e não de instituições. Também, revela os conteúdos que trabalha em sala, como a capoeira, a dança afro, debates sobre racismo e gênero no esporte, mas, principalmente, o resgate de ancestralidade e identidade de seus alunos.

AFRO-GAÚCHOS

“Temos que contar a história a partir de múltiplos olhares, dos ditos vencedores, dos ditos perdedores e dos ditos observadores.”
-Gabriela Nobre, professora de Educação Física.

Em relação à história e cultura dos afro-gaúchos, os professores percebem algumas dificuldades para desenvolver a lei, como a intolerância religiosa e a imagem do gaúcho europeu. A professora Gabriela enfatiza que a história do Rio Grande do Sul é contada pelo olhar dos fazendeiros das grandes oligarquias e isso é um problema. “Temos que contar a história a partir de múltiplos olhares, dos ditos vencedores, dos ditos perdedores e dos ditos observadores.” Ela complementa dizendo que o estado é racista e invisibiliza o negro. “Temos uma cultura afro-gaúcha muito rica e que não entra dentro da escola, as pessoas pouco conhecem.”

Além do racismo, ela aponta a falta de formação dos professores como um dos motivos para isso acontecer. Traz uma situação ocorrida em sala, quando, durante um trabalho do projeto Corpo e Ancestralidade desenvolvido com os alunos iniciava suas aulas com uma roda de bênção. “Eu passava um maracá (instrumento indígena) e muitos alunos evangélicos não queriam pegar no instrumento, porque diziam que era coisa do batuque, e eu tinha que desmistificar, dizer o que é o batuque, uma religião de matriz africana daqui.”

O professor Vander vê a religiosidade do Rio Grande do Sul, o batuque e as casas de nação como o ponto máximo da cultura afro-gaúcha e reconhece a importância dos Clubes Negros. “Tem um Clube Negro em quase todas as cidades do Rio Grande do Sul, que são os lugares em que essa questão do afro-gaúcho está concentrada, pois o tipo de festa e de alegria é diferente.” Os Clubes Negros incialmente eram espaços da sociabilidade negra, em que, além dos momentos recreativos, havia momentos para formação e para práticas culturais. Atualmente há muita resistência e luta do movimento negro para manutenção dessa história e tradição.

Amanda conta que os livros de história do estado mostram mais os europeus e indígenas. Por isso a professora relata que se aprofunda em outras pesquisas, pois não dá para se limitar aos livros didáticos. “Tivemos personagens negros na constituição social e cultural do Rio Grande do Sul, mas a figura do gaúcho espanhol e um pouco indígena cria um estereótipo que é difícil de ser desconstruído.”

Patrícia Pereira, assessora de Igualdade e Gênero, no Núcleo de Cultura e Diversidade, da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre (Smed), conta sobre o fim da parceria da Smed com a Companhia Carris para realização do projeto Territórios Negros, financiado na época pela Companhia de Processamento de Dados de Porto Alegre (Procempa). Durante sete anos, um ônibus da Carris levava crianças de escolas públicas e privadas gratuitamente em espaços historicamente negros da cidade. No trajeto, os alunos, acompanhados por professores, aprendiam a importância e a história desses locais. Ela relata que o projeto acabou pois, em 2016, a Carris retirou o ônibus de circulação alegando que a secretaria tinha uma dívida pelos transportes realizados gratuitamente. No entanto, Patrícia afirma que a gratuidade foi proposta pela própria companhia. Hoje, o Laboratório de Ensino de História e Educação da UFRGS tem dado continuidade para os estudos sobre os Territórios Negros, porém sem a realização gratuita do percurso.

Além disso, Patrícia expõe três elementos que julga importantíssimos dentro das políticas de educação étnico-raciais para o cumprimento da lei 10.639/03: orçamento, autonomia e trabalho em rede. “Orçamento, pois não temos orçamento para nada e isso é uma falha bem grande. Autonomia para poder organizar a pauta correta, dentro do que a legislação prevê. E a terceira, que considero super importante, é o trabalho em networking (rede), nas escolas como um todo, mas também dentro da própria secretaria, com a equipe do pedagógico.”

AFROATIVOS

Projeto Afroativos é protagonizado por alunos da Escola Saint’Hilaire. Foto: Arquivo Pessoal

“O empoderamento precisa estar de mãos dadas com o conhecimento.”
-Larisse Moraes, professora e coordenadora do Afroativos.

Um projeto protagonizado pelos alunos da escola Escola Municipal de Ensino Fundamental Saint’Hilaire, da Lomba do Pinheiro, ocorre desde 2017. O Afroativos é um grupo focado na afrobetização, que resumidamente ressignifica a história e cultura africana e afro-brasileira por meio de estudos da intelectualidade negra. A coordenadora do projeto, Larisse Moraes, ressalta a importância de ver a evolução da autoestima e da noção de construção coletiva dos seus alunos. “O empoderamento precisa estar de mãos dadas com o conhecimento.” Ela se diz motivada em mostrar uma periferia que produz e que age para que as mudanças ocorram. Alisson Alexandre da Silva, ex-aluno da escola e monitor do projeto, conta que entrou no Afroativos para saber mais sobre sua cultura e sua história. O garoto de 15 anos, revela que buscava se empoderar ao deixar seu cabelo crescer. Ele diz que se via como negro, mas não conseguia falar com orgulho que era negro. “Eu não tinha nenhuma referência de que ser negro era bom.” Após entrar no projeto, foi “só progresso”, como ele define. Começou a se aceitar mais e ter uma visão mais crítica sobre o que ouve e vê. Alisson relata que leva para dentro de casa o que aprende no coletivo e afirma que virou referência para os colegas menores. “Eu sou a referência que eu não tive.”

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