A logística do vírus

Na Boleia do Corona

A crise do novo coronavírus impactou diretamente a classe dos caminhoneiros e seus reflexos podem ser vistos em quem senta no banco do motorista

Mateus Rolim
Caminhos em Rede

--

Imagem retirada do banco de fotos Unplash.

“Mas eu ando com cuidado

Não me arrisco na banguela

Eu sei

Todo dia nessa estrada

No volante eu penso nela

Já pintei no pára-choque

Um coração e o nome dela

Já rodei o meu país inteiro

E como bom caminhoneiro

Peguei chuva e cerração

Quando chove o limpador desliza

Vai e vem o pára-brisa

Bate igual meu coração”

— Caminhoneiro, de Roberto Carlos, 1984.

Gira a chave, coloca o cinto de segurança. Tira do neutro, pisa na embreagem, engata a primeira. Dá o pisca, olha o retrovisor, destrava o freio de mão. Liga o rádio, baixa o vidro para deixar a brisa entrar. E põe a máscara. Põe a máscara? Põe a máscara! Em tempos de peste, o ritual padrão de muitos caminhoneiros sofreu uma pequena correção para que a viagem siga tranquila. Desde que o primeiro caso aportou em solo tupiniquim no final de fevereiro deste ano, a pandemia da Covid-19 assolou o país contaminando mais de 5 milhões de brasileiros, ceifando mais de 150 mil vidas e alterando a dinâmica da sociedade em seus métodos mais enraizados.

Para os trabalhadores do setor de transporte de cargas não foi diferente: as mudanças trazidas pela disseminação do novo coronavírus foram tamanhas que afetaram significativamente a estrutura social e econômica do modal rodoviário — parcela que representa, segundo dados de 2013 da Confederação Nacional do Transporte, 61,1% do total do deslocamento carregado pelas estradas e portos do Brasil. Estima-se que a crise sanitária tenha sido responsável por retrair em 41,23% a demanda geral da atividade logística por rodovias conforme pesquisa da Associação Nacional do Transporte de Cargas e Logística.

Esses indicadores são suficientes para dimensionar o revés financeiro do ramo transportador, mas pouco traduzem as inseguranças e incertezas dos trabalhadores que estão por trás do volante. O medo de cair doente para um vírus invisível estando quilômetros e quilômetros longe de casa, a suspeição epidêmica em postos fiscais e paradouros que parte de quem também está assustado, a possibilidade torturante de ser um vetor da doença para o círculo de família e amigos. Todas são variáveis intimidantes que rondam a cabeça dos caminhoneiros e o furtam do pouco sono que eles são capazes de desfrutar.

“A gente tá no mundo, tá fora de tudo, longe de tudo”

Dedos grossos que tamborilam na mesa de madeira, ansiedade que cresce; dedos gordos que por muitas vezes agarraram a direção do Scania 124 que repousa impávido como um colosso sob rodas na rua de paralelepípedos irregulares. O dono dos dígitos nervosos é Eliano Prestes Pereira, residente de Três Cachoeiras, no Rio Grande do sul, um homem robusto e simpático que esteve dentro de uma cabine de um caminhão por mais da metade dos seus 47 anos de vida. Eliano detém uma relação particular com seu veículo de trabalho: é na caixa de cozinha da carreta que ele se alimenta e em sua cama estofada que ele dorme — uma relação de confiança com o meio motorizado em que vive: “Eu sou mais bem protegido no caminhão do que quando chego em casa, entendeu? No caminhão eu tô sozinho. Daí eu faço a minha comida, a minha alimentação é toda no caminhão”.

A partir da consolidação da crise sanitária, medidas a fim de restringir o contágio foram instituídas em praticamente todos os lugares de convivência pública. Para os que não podem parar de percorrer o Brasil, os ambientes da estrada outrora povoados e convidativos transformaram-se em bolhas permanentemente higienizadas. Restaurantes, postos de gasolina e banheiros coletivos adotaram o protocolo de distanciamento social, uso obrigatório de máscara e disponibilidade de álcool gel em diversos pontos do recinto. “Mudou tudo, chega num posto, é tudo com álcool, chega nas empresas, tudo tem que tirar a temperatura, tudo assim mudou e a gente tá no mundo, tá fora de tudo, longe de tudo”, diz Eliano, que se preocupa em se manter saudável pois possui pessoas do grupo de risco na família.

Outra variante comportamental que a pandemia ajudou a aflorar é a percepção generalizada do caminhoneiro como um ser estranho. Motoristas de diferentes recortes sociais relatam olhares desconfiados e uma tendência à reclusão. “Eu comecei a sentir aqui na saída do posto fiscal, o fiscal com o vidro fechado mandou botar a nota no vidro e passou o laser na nota como se tivesse dizendo ‘o caminhoneiro tá trazendo o vírus’, ali eu já senti o primeiro coice, como se diz”, conta Ademar da Paz Cardoso, também de Três Cachoeiras, enquanto assistia à Santa Missa pela tevê. Caminhoneiro autônomo, Ademar têm 46 anos de boleia e já testemunhou greves, paralisações e outras situações críticas, mas nada como a parada que a COVID-19 forçou. Quando perguntado sobre como a emergência da doença enigmática afligiu o transportador autônomo de cargas, respondeu: “Pesou porque eu fiquei parado seis meses… não mudou (a natureza da profissão) porque o trabalho continuou pra todos, continua sendo o caminhoneiro carregando o Brasil nas costas”.

Segundo projeção feita pelo Serviço Social do Transporte e o Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (Sest/Senat), até julho, pelo menos 8,6% dos caminhoneiros do Brasil foram infectados pelo novo coronavírus. Escoar os variados produtos do agronegócio e da indústria nacional para os postos de abastecimento é considerado serviço essencial e, apesar de participar apenas de 1,4% do PIB, pode impactar em até 29% das atividades econômicas do país. Ou seja, qualquer interrupção na cadeia de caminhões que interliga produtores e comerciantes pode gerar graves crises de segurança alimentar, falta de medicamentos em farmácias e situações de escassez total.

A COVID é uma cilada, Bino!

É possível dizer que as agruras do quinhão dos que andam sob os eixos do cavalo mecânico não tocaram a sensibilidade da cúpula governamental em Brasília. Apesar de muitos caminhoneiros terem sido contemplados com o auxílio emergencial proposto pelo Governo Federal, o presidente Bolsonaro vetou, em maio, partes do Projeto de Lei 873/2020 que garantia o benefício para caminhoneiros, motoristas de ônibus e de vans escolares sob a justificativa de que a proposta original feria o princípio da isonomia por privilegiar algumas profissões em detrimento de outras. Diante dos desafios que o choque inicial da pandemia causou, proprietários de caminhões recorreram ao programa de suspensão de contrato de trabalho e redução da jornada; esse não foi o caso de Eduardo Matos Pereira, 38 anos, hoje um advogado de sorriso largo que gerencia uma frota de cinco carretas, mas que já foi uma criança brincando nos pedais da jamanta: “De fato eu também pensei em fazer, mas logo que a gente foi para isso, foi pra essa ideia de entrar pros convênios do governo, voltamos a trabalhar e isso passou e não tivemos mais tempo de ir atrás, mas eu sei de caso de gente que fez e se arrependeu porque trabalhou mais, e daí o trabalhador tá com o contrato de trabalho reduzido”.

Eduardo já esteve nos dois lados do balcão: trabalhou anos como caminhoneiro, mas acabou largando o volante para se dedicar à faculdade de direito e administrar a firma transportadora da família, ainda assim afirma que é mais motorista de caminhão do que qualquer outra coisa. Como empregador, Duda — como é conhecido por seus pares — pôde atestar o pânico que o vírus de superfícies espículas é capaz de causar quando um de seus empregados contraiu a COVID: “Ele tava vindo do Nordeste, ele me passou a situação, eu perguntei a ele se ele queria ir num hospital e ele me disse que parou num local que tinha uma certa estrutura simples de atendimento, daí falaram pra ele que se ele fosse para um hospital já baixava lá e inclusive falaram para ele ‘se tu morrer aqui, é aqui que tu fica’”. O motorista resolveu seguir viagem até chegar em sua casa na já citada Três Cachoeiras, a pequena cidade do litoral do Rio Grande do Sul conhecida como “terra do caminhoneiro”, onde foi isolado e posteriormente se recuperou.

Calcula-se que 2020 será o pior ano da história do setor de transportes, mesmo com os índices de demanda tendo melhorado 20,2% de abril para cá segundo levantamento da Associação Nacional do Transporte de Cargas e Logística. O decréscimo da exigência do modal rodoviário está intrinsecamente ligado às quedas vertiginosas da produção industrial brasileira; fábricas com capacidade reduzida na linha de montagem não necessitam de tantos caminhões para distribuir seus produtos. Porém, cargas de alto valor para o funcionamento da sociedade tiveram seu volume senão aumentado pelo menos mantido: a Transpacato, empresa de Eduardo, teve que reposicionar os caminhões do ramo industrial para o de cargas alimentícias, que seguiu a pleno vapor, principalmente as puxadas de grãos como soja e milho.

Não há forma convincente de projetar a futura conjuntura em que o caminhoneiro estará inserido. Se os indícios econômicos dão sinal de que a crise do corona irá continuar deprimindo a produção do país por longo tempo, por outro lado existe um certo otimismo pessoal por parte dos trabalhadores do setor. “Acredito que esteja voltando, automaticamente tá voltando […] O fluxo do trânsito já aumentou muito e parece que as pessoas já voltaram” ressalta Eliano, a despeito do medo de uma segunda onda de contaminação devido a flexibilização dos cuidados a qual compara com “um cara que recém aprendeu a nadar e já quer ir para o fundo”.

Mesmo referido como essencial, o serviço do caminhoneiro é inglório: são muitos os que padecem em acidentes por conta das péssimas condições das vias, outros tantos são os que enfrentam problemas de saúde por consequência das longas e exaustivas jornadas de trabalho. Adicionam-se às tragédias os requintes de crueldade: em 2019, o Brasil registrou em média dois roubos de carga por hora. Solidão, privações e violência acompanham aqueles que chegam a rodar mais de nove mil quilômetros por mês e trabalhar onze horas e meia por dia. Para driblar as dores da saudade, os caminhoneiros costumam buscar abrigo nos laços que firmam com companheiros de estrada. Todas essas asperezas da vida que toca num eterno ir-e-voltar de casa foram acentuadas com a pandemia, o que decerto serviu para recrudescer o temor de uma das classes vitais para o andamento da sociedade brasileira.

As pistas têm uma didática implacável: são excelentes professoras em ensinar o duro da labuta, o sacrifício que rende os trocados do final do mês. Caminhoneiros não fazem home-office, não trabalham em capacidade reduzida, não abdicam de meio-turno para atividades do lar. Quando a noite cai, caminhoneiros precisam se transformar em máquinas hiperatentas enquanto a cidade dorme. A voz minguada do rádio, as brincadeiras de grupos de WhatsApp e o ronco do motor às vezes são a única companhia de quem corta o quinto maior país do globo pelas BRs de Norte a Sul. Para eles, o frenesi pandêmico é mais um contratempo que surgiu para apressar uma vida que desde cedo já corre depressa demais.

Os percalços experienciados em comunhão ajudam os caminhoneiros a solidificarem-se como uma comunidade forte e unida. Os efeitos da greve de 2018 cimentaram no imaginário popular como a logística do Brasil é refém do motorista de caminhão. A criticidade da situação da COVID-19 em muito foi sanada pelo martírio de trabalhadores que não se podem dar o luxo de seguir a quarentena recomendada pelas organizações de saúde. As famílias desses indivíduos também sofrem o seu bocado, especialmente quando o risco do contágio bate à porta. Quando o vírus for apenas a memória de um período estranho, o caminhoneiro seguirá sua toada, a banguela no retão limpo, o ressoar em ferro e óleo de mais uma viagem.

--

--