Meio ambiente

O destino do Mato do Júlio

Maior área verde de Cachoeirinha é alvo de projetos urbanísticos, e movimentos lutam pela sua preservação

Leticia Menezes Pasuch
Caminhos em Rede

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O Mato do Júlio se encontra na interface da Avenida Flores da Cunha até a RS-290. Foto: Leticia Menezes Pasuch

O acelerado processo de urbanização nas últimas décadas ocupa cada vez mais as áreas verdes e um dos grandes desafios da atualidade tem sido equilibrar o desenvolvimento econômico com a preservação ambiental. É o que acontece em Cachoeirinha, município da Região Metropolitana de Porto Alegre que, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), possui 45% de urbanização de vias públicas em um território de aproximadamente 44 quilômetros quadrados. O Pampa é o bioma predominante na região e, de todas as áreas verdes ainda existentes, a maior delas se concentra no popular Mato do Júlio. Os 256 hectares de terra abrangem uma grande cobertura florestal e variedade de espécies de animais, além de abrigar um patrimônio histórico: a Casa dos Baptista.

No entanto, discussões norteiam seu destino. O ano de 2020 foi marcado por projetos que apontam a área como de potencial crescimento econômico, e o último episódio foi a proposta da Lei complementar 4.463/20, que faz alterações no Plano Diretor da cidade, visando o zoneamento de parte da área. ONGs e coletivos organizados por moradores de Cachoeirinha consideram o projeto ilegal e lutam pela preservação por sua devida importância ambiental e arqueológica. O silêncio permeia a falta de diálogo da prefeitura com a comunidade e deixa lacunas abertas sobre o destino da região.

O zoneamento

Elvis Sandro Valcarenghi, secretário de Planejamento e Captação de Recursos do município, conta que, na implantação da diretriz do Plano Diretor em 2007, não se sabia o que fazer com o zoneamento, e sendo o Mato do Júlio área de grande interesse, resolveram defini-la como especial de interesse ambiental. “Hoje se reconhece que foi um erro ter gravado a área com essa terminologia, porque todo território de Cachoeirinha é considerado zona urbana, e como zona urbana, tem direito a um regime urbanístico”, diz.

Elvis alega que implantar uma unidade de conservação é complexo porque a área precisa ser pública em primeiro lugar e, se for área particular, como é o Mato do Júlio, o proprietário é que deve, por iniciativa própria, buscar o poder público para que a propriedade se enquadre dentro dessa unidade de conservação. O secretário defende os interesses econômicos ao justificar a necessidade de ampliar zonas urbanas na cidade e custear os serviços públicos para a população de Cachoeirinha.

De acordo com Valcarenghi, a partir da aprovação da Câmara, a área está apta a receber propostas de projetos, hoje impedidos pela falta de regime urbanístico definido. Ele reforça também que toda preservação é prevista na legislação ambiental: “Com a negociação que fizemos com os proprietários da área, a gente pretende preservar o casarão e 6,3 hectares no entorno, onde vamos transformar em um grande parque ambiental. Além desses hectares, no restante, a legislação ambiental será aplicada”.

Eduardo Burmeister, biólogo e mestre em ciências ambientais pela Universidade de Canterbury (Nova Zelândia), aponta que interferências na área serão negativas para a preservação do Mato do Júlio. Explica que zoneamento urbano significa cortar mato, aumentar o fluxo de pessoas, pavimentar e criar rede de esgoto em uma área que já foi impactada nas últimas décadas. “Houve um empobrecimento gradativo e crônico das áreas, portanto, o que sobrou é importantíssimo e vital”, afirma.

O Mato do Júlio faz divisa com a Avenida Flores da Cunha, a principal via da cidade e a mais movimentada. Há diversos relatos de atropelamentos de animais em função do grande fluxo de carros na avenida, situação que deve se agravar com o zoneamento. Uma iniciativa do Centro Brasileiro de Estudos em Ecologia de Estradas (CBEE) estima em tempo real o número de animais mortos por atropelamento nas rodovias brasileiras e mostra que, a cada segundo, morrem 15, além do Rio Grande do Sul ser um dos estados que possui a maior mortalidade.

O biólogo Eduardo confirma que o trânsito perturbará os poucos animais que ainda restam na área. Foto: Leticia Menezes Pasuch

Uma luta antiga

A Associação de Preservação da Natureza do Vale do Gravataí (APN-VG) luta pela preservação ambiental há 41 anos e tem grande papel na defesa para que o Mato do Júlio seja tratado como reserva ecológica. Os representantes da associação Deoclécio Charão e Marcelo Beckenkamp Domingues declaram que têm feito todos os esforços necessários para realizar estudos na área e acrescentam que, após fazer o levantamento do local, deve-se fazer o Estudo de Impacto Ambiental, buscando trabalhar pelo viés legal. Afirmam que o Projeto de Lei 4463 fere o parágrafo único do artigo 154 do Plano Diretor, que aponta o Mato do Júlio como Área de Especial Interesse Ambiental, e alegam que o Estudo de Viabilidade Ambiental não foi integralmente realizado pela prefeitura.

Autonomia e ativismo

Atualmente, através das redes sociais, o Mato do Júlio ganha a atenção de cidadãos que acreditam no potencial da área. Alan da Costa, morador do município e estudante de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), criou o perfil no Instagram “@matodojulio_” para defesa, que hoje conta com mais de 3 mil seguidores. Com o crescimento da página, acreditou que poderia dividir as pesquisas com mais pessoas, então organizou um grupo com moradores de Cachoeirinha e cidades vizinhas para estudar a flora e fauna existentes no Mato do Júlio, com o apoio de pesquisadores do Laboratório de Geoprocessamento da UFRGS e do uso de drones e satélites. Por ser uma área privada, as pesquisas são limitadas. “Gostaríamos de ter acesso à área, levar equipamentos e ferramentas, mas infelizmente ainda não conseguimos fazer assim”, lamenta Alan.

Northon Amaral, estudante de Geografia na UFRGS e participante do grupo, realiza estudos cartográficos do Mato do Júlio e destaca a importância da área como esponja natural, que retém a água da chuva, abastecendo sua própria biodiversidade, e que serve como afluente para o Rio Gravataí. Sendo Cachoeirinha uma região propensa a alagamentos, o zoneamento intensificaria esse problema, prejudicando vias públicas. Segundo ele, a qualidade do ar e o clima também seriam afetados, pois colocaria em risco um dos principais mantenedores e reguladores de umidade local.

Felipe Schulte, morador da cidade, mantém ativa a página do Facebook “Salve o Mato do Júlio”. Para Felipe, o Mato é parte do imaginário da cidade. “Vivi minha infância e adolescência brincando nos matos da cidade, que hoje são escassos. Um dos únicos que se conservaram foi o Mato do Júlio, que é o maior de todos e o coração da cidade.” Ao saber do projeto de zoneamento, Felipe organizou reuniões na escola Rodrigues Alves, informando os moradores sobre o caso. Através da página, divulgou as audiências públicas e o movimento popular em defesa do Mato do Júlio lotou a Câmara de Vereadores. “O Ministério Público deu um parecer bem rápido, coisa que geralmente não acontece. Os jornais da cidade se movimentaram”, afirma Felipe.

“A destruição da natureza seria uma dupla derrota para os cidadãos de Cachoeirinha. Se for vendido, as penalidades pra cidade nunca mais se recuperariam.”
- Felipe Schulte, administrador da página “Salve o Mato do Júlio”

Em 6 de junho de 2020, houve uma manifestação em frente à Prefeitura e um abraço simbólico ao Mato do Júlio. Felipe defende que o envolvimento popular é essencial e acredita no potencial da área para projetos que vão além da venda e de aumento da população: “A destruição da natureza seria uma dupla derrota para os cidadãos de Cachoeirinha. Se for vendido, as penalidades pra cidade nunca mais se recuperariam.”

Casa dos Baptista

Além da importância da biodiversidade, o Mato do Júlio tem potencial arqueológico: o único imóvel existente dentro da área é a Casa dos Baptista, construída há 200 anos, de arquitetura colonial portuguesa e família açoriana.

De acordo com Guilherme Dias da Silva, doutor em História pela UFRGS e historiador do município há nove anos, a história da Casa começa no século XIX com João Baptista Soares de Silveira e Souza: empreiteiro conhecido por obras importantes em Porto Alegre e Cachoeirinha. Em 1870, João deixou suas terras para dois sobrinhos: José e João Baptista. Na passagem dos anos, as propriedades foram divididas entre seus descendentes e loteadas. O único herdeiro que não mexeu nas terras foi Lydio Batista Soares, pai do Júlio, que deu origem ao nome Mato do Júlio. Segundo o historiador, a situação de conservação da casa é precária. “Se não houver um esforço de conservação urgente, pode haver danos muito sérios”, afirma.

Em 1997, após decisão em primeira instância, a justiça determinou que a prefeitura de Cachoeirinha não tinha obrigação de tombar a casa, pois seu valor histórico não era comprovado, mesmo com o laudo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Internacional (IPHAN) atestando sua importância para a cidade. Após mobilização com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e setores da sociedade civil, a sentença foi revista em segunda instância e se iniciou o processo do tombamento. Para o historiador, o objetivo final é que a Casa dos Baptista venha a ser patrimônio público e museu, ressaltando que o acervo da casa – que está, atualmente, na Casa do Leite de Cachoeirinha – é fundamental para a história do município. Afirma que, assim que possível, tudo retornará ao local.

Guilherme conta que Júlio era vigilante na defesa de suas terras. “Patrulhava as fronteiras da propriedade”, diz. Hoje, diante do dilema da preservação histórica e ambiental do Mato do Júlio e da Casa dos Baptista, que ainda está em curso, o apoio a e luta seguem no embate por quem quer ver a área nomeada em sua homenagem conservada para os futuros anos.

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