Violência contra a mulher

Uma batalha desgastante

Desfecho do caso Mari Ferrer gera revolta e acende debate sobre as dificuldades que as mulheres enfrentam ao denunciar estupro

Mariel Lahorgue
Caminhos em Rede

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Voz da mulher é silenciada. Arte: Jennifer Costi

Pense em como é ter 21 anos e ter a oportunidade de trabalhar como influenciadora digital em um beach club de luxo em Florianópolis. Poderia ser um sonho realizado, mas, no caso de Mariana Ferrer, acabou se tornando um pesadelo.

Tente entender o que ela conta e se colocar no lugar dela. Você está trabalhando em uma noite de festa no Café de La Musique, na capital catarinense. De repente, sem que você se lembre direito do que aconteceu, você é levada a uma sala dentro do beach club, acompanhada por um homem mais velho. Sua cabeça gira e você não consegue distinguir imagens, tudo está nublado. Suas mãos tremem e as lágrimas escorrem. Algo muito errado aconteceu, talvez alguém tenha colocado algum entorpecente em sua bebida. Você luta para conseguir chamar um carro de aplicativo, só quer voltar para casa. Quando chega em casa, sua mãe entra em desespero e nota que suas roupas íntimas estão manchadas de sangue. Só então você começa a compreender o que aconteceu. Você foi estuprada.

Você vai até a Polícia Civil, realiza uma série de exames e, após investigação policial com o material genético encontrado em suas roupas íntimas, depoimentos e acesso às câmeras do local, a polícia indicia o empresário paulista André de Camargo Aranha, de 43 anos, por estupro de vulnerável. O que segue é um processo doloroso, no qual você é descredibilizada a todo momento pela defesa do empresário, tendo suas fotos postadas nas redes sociais criticadas da forma mais machista possível.

Você não consegue mais sair sozinha de casa, não consegue confiar nas pessoas, passa a tomar remédios fortes para controlar a depressão e a ansiedade, não se reconhece mais. Mesmo assim, consegue achar coragem dentro de si para lutar por justiça. Mas a principal plataforma digital na qual você leva seu caso ao público e relata o que aconteceu, o Instagram, chega a ser suspensa perante ordem judicial. E, após dois anos vivendo dias de terror, o juiz absolve o empresário alegando falta de provas.

Manifestação de apoio à Mari Ferrer. Reprodução: instagram @projetemos

A violência sexual faz parte da realidade de muitas mulheres brasileiras, mas esta é a história da jovem Mariana Ferrer, que em 15 de dezembro de 2018, virgem, aos 21 anos, foi estuprada. André de Camargo Aranha foi acusado no início de 2019 e foi comprovada compatibilidade entre o seu material genético e o esperma presente na calcinha da influenciadora. A única coisa que não houve comprovação foi a presença de entorpecente no sangue de Mariana.

Recentemente, no dia 9 de setembro de 2020, o juiz Rudson Marcos, da 3.ª Vara Criminal de Florianópolis, absolveu Aranha. Mas o caso ganhou ainda maior repercussão quando, no início de novembro, um trecho de uma audiência online foi divulgado pelo The Intercept Brasil , causando uma série de protestos nas redes sociais. Nele, o advogado de Aranha, Cláudio Gastão da Rosa Filho, humilha a influenciadora digital com frases do tipo: “Não gostaria de ter uma filha ‘no nível’ dela”. Ele também critica fotos das redes sociais de Mari, como ficou conhecida, dizendo serem muito sensuais. A influenciadora chora e pede respeito, mas o advogado diz: “Não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso e essa lágrima de crocodilo”.

O CICLO DA VIOLÊNCIA

O instituto Maria da Penha define violência sexual da seguinte forma: “Trata-se de qualquer conduta que constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força”. Entretanto, mesmo que o Brasil tenha contabilizado 66 mil casos de violência sexual em 2018, de acordo com o 13.º Anuário de Segurança Pública, denunciar estupro ainda é um tabu no país. Conforme o Atlas da Violência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apenas entre 10% a 15% dos casos de estupro são reportados para as autoridades e entram para as estatísticas do crime no país. Os motivos mais comuns para não reportar o estupro são o medo do estuprador, banalização da violência sexual, temor por ninguém acreditar na sua história, sentimento de culpa e desconfiança com o processo judicial.

No ano de 2015, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em parceria com o Governo Federal, lançou um projeto para que todas as delegacias do território de paz do Brasil tivessem disponível atendimento psicológico e assistência social. De acordo com a psicóloga Natália Neff, que trabalhou na 20º Delegacia de Polícia Civil de Porto Alegre pelo projeto, era comum policiais conduzirem vítimas de violência contra a mulher direto para a Delegacia da Mulher sem fazer escuta ou registrar ocorrência. Na opinião da psicóloga, falta acolhimento dos serviços que deveriam prestar atendimento às vítimas, que chegam de uma situação frágil e deparam-se com um ambiente hostil na qual sua dor não é respeitada.

Natália Neff. Reprodução: arquivo pessoal

A psicóloga relata o caso de uma mulher que chegou com a filha, fugindo do marido após sofrer diversas violências e procurando ajuda da polícia para poder ir até um abrigo com segurança. A psicóloga teve que intervir para que a delegacia providenciasse auxílio à mulher, pois os policiais — que nessa delegacia eram todos homens — não sabiam como abordar a situação. “Seria ideal que todas as delegacias estivessem preparadas para casos de violência contra a mulher, porque é o primeiro lugar onde ela vai pedir ajuda”, complementa. Natália ainda afirma que a cultura do estupro é escancarada nos comentários machistas dos próprios polícias quando uma mulher vai fazer ocorrência. A psicóloga diz que eles utilizam expressões sexistas, por exemplo, em relação à roupa das vítimas, como fez o advogado de Aranha para Mari Ferrer.

“As mulheres acabam vindo à delegacia quando não aguentam mais viver em uma situação de violência”, explica Cybelle Ez Zughayar, chefe dos escrivães da 1ª Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher (Casa da Mulher Brasileira) de São Paulo. Segundo Cybelle, o medo das mulheres denunciarem é muito complexo e engloba questões familiares, em especial o receio de retaliação da família ao fazer a ocorrência. A escrivã esclarece que a Casa da Mulher Brasileira de São Paulo possui atendimento 24 horas diferenciado e humanizado às vítimas de violência contra a mulher, pois conta com vários serviços: apoio psicossocial; delegacia; juizado especializado em violência doméstica e familiar contra as mulheres; Ministério Público e Defensoria Pública. Além disso, o programa Bem Me Quer, uma parceria entre o Governo do Estado de São Paulo e o hospital Pérola Byginton, possibilita que mulheres, após o boletim encaminhado na delegacia, sejam direcionadas para realizar exames e tratamento médico adequado.

Casa da Mulher Brasileira de São Paulo. Reprodução: Governo do Estado de São Paulo

“Quando essa mulher faz um boletim de ocorrência, a gente abre um processo de investigação chamado inquérito policial, então a porta de entrada dessas mulheres sempre é o plantão policial. A partir do momento que existe um crime, existe uma investigação que deve ser feita”, explica a escrivã. Depois de feito o boletim de ocorrência, no caso de ser ação pública incondicional, é instaurado o inquérito policial e inicia-se a investigação do crime. “Acabamos chegando a autoria e as condições que ocorreram, fazemos o relatório e encaminhamos para o juiz com prestação do Ministério Público, com a possível condenação ou não do autor dos fatos”, declara Cybelle, elucidando que a Casa da Mulher Brasileira tem o diferencial de ser também investigativa.

Já em outras Delegacias da Mulher do Brasil, o acesso é bem mais complicado. Tamires Paveglio, candidata a prefeitura de Gravataí pelo Psol, defende que as Delegacias da Mulher deveriam disponibilizar atendimento 24 horas. Tamires lembra da ocasião que precisou dos serviços da Delegacia da Mulher de Porto Alegre. Após sofrer agressão em seu relacionamento, não conseguiu denunciar porque a delegacia não estava funcionando e ela não queria ser atendida por um homem em outra delegacia devido aos comentários machistas e ao juízo de valor que culpabiliza a mulher.

Sobre o caso Ferrer, Tamires acompanhou como participante do coletivo feminista, antirracista e anticapitalista Juntas e relata que, o dia em que André de Camargo Aranha foi absolvido, o sentimento de derrota era compartilhado por todo o coletivo. Mas ela diz que já esperava um desfecho favorável para o agressor, tendo em vista a classe privilegiada dele, o elitismo, o racismo e o patriarcalismo da Justiça brasileira. “A mulher não é um ser de direitos de nascença, já o homem nasce com o respeito como direito intrínseco”, afirma Tamires.

Tamires Paveglio. Reprodução: arquivo pessoal

“A mídia tende a tirar Mariana Ferrer da posição de vítima para agente de acusação e é comum que o rosto do agressor não seja exposto”, lamenta Tamires. Segundo ela, o desfecho do caso de Ferrer, devido à exposição que teve, pode deixar mulheres mais inseguras de denunciar o agressor e, em contrapartida, fazer com que os agressores sintam-se mais “confortáveis” em cometer os crimes. Consequentemente, é necessário que as políticas públicas voltadas para as mulheres sejam revisadas e ampliadas em um país no qual os direitos das mulheres são constantemente questionados pelas autoridades no poder.

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Mariel Lahorgue
Caminhos em Rede

Assessora de imprensa e redatora da Sabujo. Jornalista formada pela UFRGS.