Imagem ilustrativa: protesto Marcha das Vadias em Porto Alegre/RS 2013

O drama do vazamento do nude na internet

Mulheres são o maior número de vítimas e ato pode consistir como violência de gênero

Canal Feminista
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8 min readSep 1, 2017

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Eduarda Endler Lopes/ Canal Feminista

Ahistória é comum e se repete: Juliana* se relacionava com um menino, mas, como era muito nova — na época tinha 15 anos — , decidiu não levar o relacionamento adiante. Com o passar do tempo, se tornou amiga do rapaz e enviou uma foto íntima sua. O que aconteceu, posteriormente, não é novidade: ele enviou as fotos para pessoas mais conhecidas da sua cidade e, a partir disso, a história de Juliana se transformou em uma bola de neve.

Foi traumática a forma como ela descobriu a proporção da circulação das imagens. Juliana estava reunida com amigos para uma janta. Quando o dono da casa plugou o cabo HDMI do notebook na TV, a foto vazada de Juliana estava como papel de parede. “Um caráter ruim. Apenas isso. Porque eu realmente nunca tinha feito nada para ele, éramos amigos, pelo menos era o que eu achava. Ele gostava de ser o centro das atenções humilhando os outros, não era uma pessoa boa”, lembra. No início, a menina tentava não dar importância, mas, no ano seguinte, virou colega de aula do garoto que havia vazado sua foto. Com isso, as piadas começaram.

“Mesmo assim, achava que não estava mal com isso. Até o momento, meus pais não sabiam do ocorrido e isso era o que mais me pesava. Eu tinha consciência de que a qualquer minuto eles iam descobrir e isso me corroía por dentro”.

Assim como Juliana, outras pessoas tiveram suas vidas impactadas pelo vazamento de imagens íntimas na internet. De acordo com dados da ONG Safernet Brasil, que monitora crimes e violações dos direitos humanos no Brasil, foram registrados 301 casos de vazamento das fotos íntimas, conhecidas como nudes. Entre os vazamentos, a maior parte das imagens são de mulheres, alcançando 67% das histórias. Além disso, as vítimas possuem uma faixa etária de 25 anos.

O compartilhamento de fotos íntimas sem autorização é algo que deve levar em consideração as questões de gênero e sexualidade, é o que afirma o psicólogo social Lucas Goulart. O psicólogo explica que os homens são incentivados a exibir seus feitos sexuais — excluindo as situações em que faz com pessoas do mesmo sexo ou mulheres transexuais –, enquanto as mulheres são culpadas e muitas vezes punidas quando agem da mesma forma. Dessa maneira, o vazamento constitui uma faceta de violência de gênero.

“Esse compartilhamento obviamente denota em uma culpabilização moral da mulher, sendo esse o centro da problemática. Não é coincidência que a maioria das fotos e vídeos vazados são de mulheres compartilhadas por homens com quem elas já tiveram algum tipo de relação íntima, onde os homens presentes nessas fotos e vídeos saem socialmente fortalecidos, enquanto as mulheres são estigmatizadas por sua sexualidade.”

Entender o compartilhamento de imagens íntimas como uma violência é algo difícil para as pessoas, principalmente porque há um agressor nessa situação. “As razões pela qual os homens (na grande maioria das vezes) vazam essas fotos são motivos muito próximos daqueles que cometem violências mais tradicionais, como a física, a psicológica e principalmente a sexual: a necessidade de manter poder sobre a mulher, a agressão à mesma e — especialmente nesse caso — a assunção de que não sofrerá consequências sociais ou legais”, afirma. Goulart explica que esse ato poderia ser facilmente enquadrado na Lei Maria da Penha, entretanto, esse tipo de processo não acontece pela dificuldade de enxergar essas situações como um ato de violência de gênero.

Em relação ao crime, as possíveis medidas variam de acordo com a forma com que as imagens foram conseguidas. Renan Zambon Braga, advogado criminalista e pós-graduando em Ciências Penais, explica que o caso mais comum se trata de fotos obtidas de forma consensual ou registradas pelo próprio agente, posteriormente divulgadas na internet sem autorização da vítima. Nestas situações, ocorre o crime de difamação (art. 139 do Código Penal, com detenção de três meses a um ano e multa), majorado pelo meio que facilita a divulgação (art. 141, inciso III do CP, com aumento de um terço nas penas aplicadas) e/ou injúria (art. 140 do CP, com detenção de um a seis meses ou multa). “O tipo penal de difamação visa proteger a reputação da pessoa, enquanto o de injúria protege a sua própria honra e dignidade, sendo que todas podem ser afetadas no caso de divulgação da intimidade”, esclarece Braga.

Quando as imagens são obtidas por meio de quebra de segurança eletrônica, seja por uso do celular ou do computador da vítima, há também o crime de invasão de dispositivo informático (art. 154-A do CP, com detenção de três meses a um ano e multa).

“Note-se, contudo, que não há crime próprio para a divulgação de imagens íntimas.”

Renan lembra de um projeto de lei, criado em 2013, que aguarda apreciação no Senado (PL 5555/2013), tipificando o crime, acrescentando ao Código Penal o crime de exposição pública da intimidade sexual (art. 140-A — reclusão de três meses a um ano e multa), que substituiria a aplicação da injúria. “Apesar de considerar a criminalização explícita louvável, não prevejo a aprovação da lei ter qualquer consequência prática na penalização ou processamento destes crimes, tendo em vista que a pena se mantém idêntica na proposta”, opina.

Quando o vazamento é de menores de idade, o crime é diferente. Nestas situações, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a pena é diferente para quem vender ou expor à venda (art. 241, com reclusão de quatro a oito anos e multa), oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer meio (art. 241-A, com reclusão de três a seis anos e multa) e adquirir, possuir ou armazenar (241-B, com de um a quatro anos e multa) registros que contenham cenas de sexo explícito ou pornográficas envolvendo criança ou adolescente. “Todos estes crimes são processados por ação penal pública incondicionada à representação, ou seja, a partir do momento em que alguém realiza a notícia do crime junto à polícia, o processo seguirá independentemente da vontade da vítima, ao contrário dos crimes de ação penal privada que dependem da mobilização da vítima”, explica.

Renata* passou por uma situação semelhante à de Juliana. A menina participava de uma comunidade do Orkut sobre futebol, onde conheceu seu namorado. Como o relacionamento teve muitos términos e voltas, ela acabou conhecendo um menino de Minas Gerais no mesmo grupo, que o considerava tão próximo quanto qualquer outro amigo que estivesse presente em sua rotina. Em uma das separações com o namorado, Renata trocou fotos íntimas com o mineiro.

Meses após as fotos terem sido enviadas, Renata recebeu uma ligação do namorado, questionando se ela havia enviado fotos íntimas para alguém, pois as fotos dela estavam expostas abertamente para quem estava na comunidade.

“Eu peguei o computador e vi um tópico com todas as minhas fotos e vídeos hospedados. Meu celular estava cheio de notificações e o resto daquele dia não lembro direito, porque acho que acabei bloqueando da minha mente.”

Na sequência disso, seu número de telefone foi divulgado em blogs afirmando que ela era garota de programa, citando, inclusive, seu endereço. “Todos os meus ex-colegas do Ensino Médio receberam as fotos, minha família inteira foi abordada. Um por um, eles mandaram as fotos e avisaram ‘sua filha/sobrinha/prima/neta é uma puta, veja as fotos’. Pessoas de todo o Brasil tentavam entrar em contato comigo pra me avisar que as fotos tinham sido vazadas ou só pra me chamar de puta mesmo”, relata.

Na época em que suas fotos foram vazadas, Renata estava procurando emprego e, sempre que tinha uma entrevista, sentia medo, pois achava que fariam uma busca com seu nome na internet e encontrariam suas fotos. Resultado de uma das entrevistas, a menina foi contratada para ser recepcionista de uma escola de inglês. Depois de dois meses, a comunidade em que suas fotos haviam sido vazadas saiu do ar. “Essa foi a pior vez de todas, eu finalmente estava empregada e tinha conseguido cobrir um pouco disso. Eles entraram em contato com todas as pessoas do meu trabalho, entraram em contato com a página da escola em que eu trabalhava e mandaram as fotos até para o site oficial da rede”, lembra. Com a repercussão, foi ameaçada de ser demitida, caso o ocorrido afetasse a imagem da escola ou chegasse nos ouvidos do aluno. Após tomar algumas iniciativas, inventando histórias, como seu suicídio, as pessoas da comunidade não a atacaram mais.

A psicologia diverge em relação ao vazamento de imagens íntimas. Assim como alguns profissionais consideram o fenômeno uma violência, alguns investem na ideia de culpabilização da vítima de maneira inconsciente.

“A culpabilização da vítima pelo/a profissional da psicologia pode remeter no que muitas vezes se chama de um processo de ‘reviolentação’ dos profissionais, que deveriam assistir essas pessoas: ou seja, as vítimas novamente são rechaçadas e julgadas socialmente por sua sexualidade, inclusive pelos/as profissionais que deveriam auxiliá-la nessas questões.”

Juliana se diz arrependida por dois momentos do episódio em que esteve envolvida: primeiro, por ter confiado e enviado a foto; depois, por não ter agido e procurado por seus direitos. “Por mais que eu não perceba, tenho consciência que isso causou uma ‘janela killer’ [isto é, uma oportunidade de diversas acusações] e esse é um dos motivos por estar em tratamento com psicólogo atualmente”, explica. Inicialmente, Juliana negava que era ela nas fotos. Mas, com o passar do tempo, se tornou cansativo precisar arrumar características para demonstrar que não era ela e, por isso, acabou aceitando o que havia acontecido. Hoje, Juliana vê a situação com outros olhos:

“A gente faz o que quiser com o nosso corpo, posso tirar foto dele sim! Mas o que não pode são as outras pessoas usarem disso para o mal. Não se sinta culpada, você não é culpada por isso, mas sim, a pessoa que divulgou suas imagens. Ele ou ela precisa pagar pelo o que fez.”

Mesmo depois de quatro anos do acontecido, Renata ainda é afetada pela situação. Cercada por uma preocupação diária, faz busca pelo seu nome em novas redes sociais e na internet. “Eu, no fundo, acredito que nenhum homem vai me amar de verdade, porque sou puta. Tenho sexo casual e ajo como um objeto por ter simplesmente aceitado que essa é minha função. Leio todos os dias artigos feministas que me dizem o contrário, mas ainda acredito que sou uma ‘menina pra comer’ e não uma ‘menina pra casar’. Sou extremamente insegura em qualquer relacionamento e acho que todo mundo tem vergonha de estar relacionado a mim, a minha família, meus amigos ou qualquer pessoa com quem eu me envolva romanticamente. Vivo com uma máscara de alguém muito segura de si e desapegada, que não precisa da opinião dos outros para se definir, mas no final do dia eu sou a mulher mais insegura do mundo, porque sou puta”, enfatiza.

*Os nomes foram substituídos para preservar a identidade das vítimas.

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