Texto de Ricardo Lockette, publicado no Players' Tribune

Pedro Pinto
ZONA FA
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10 min readJul 6, 2016

Ontem, Ricardo Lockett, ex-wide receiver do Seattle Seahawks publicou este artigo no Players' Tribune: www.theplayerstribune.com/am-i-about-to-die/. O site é exclusivo para publicação de artigos escritos pelos próprios atletas. Neste artigo, ele conta sobre o que passou após a sua lesão na partida da temporada de 2015 contra o Dallas Cowboys, lesão esta que resultaria em sua aposentadoria. O texto é extremamente emocionante e mostra como o esporte é apenas uma fatia da vida do atleta e que na vida, existem coisas muito mais preciosas do que um anel de Super Bowl.

Pessoalmente, eu fiquei bastante comovido com o texto de Lockette e resolvi fazer a tradução para vocês. A autoria do texto é 100% de Lockette e do Players' Tribune. estou aqui apenas para fazer a tradução para o português.

Confira o texto de Lockette traduzido:

"Foi como estar num acidente de carro. Tudo foi muito rápido e do nada, estava tudo em camera lenta. Eu estava fazendo a minha função na equipe de punt contra Dallas na temporada passada, como eu já fiz milhares de vezes. Eu empurrei meu bloqueador. Eu virei para a esquerda. Eu vi uma camisa branca.

Batida.

Eu fui ao chão e escutei o som que você nunca quer ouvir. Quando você tem uma experiência de quase-morte, as pessoas dizem que você consegue ver uma luz. Bem, eu não vi a luz. Eu escutei um som. Você sabe de qual estou falando - tipo quando você é moleque, entediado na festa de família, e passa o dedo na borda da taça de vinho da sua tia. É aquele som esquisito, uma vibração aguda bem distante.

Foi aterrorizante. Eu não conseguia ouvir a torcida. Eu não conseguia ouvir meus companheiros. Foi ali que eu soube que era grave.

Eu estava pensando, O.K., levante. Só levante.

Mas eu não conseguia. Meu corpo inteiro estava dormente. Eu não conseguia mexer meus braços. Eu não conseguia mexer a cabeça. Eu não conseguia falar.

A única coisa que eu conseguia fazer era movimentar meus olhos. Eu estava pensando:

Estou surdo?

Estou paralizado?

Estou prestes a morrer?

Por favor, alguem me ajude.

Naquele momento, eu estava completamente desamparado. Você sabe como isso sente? Você já teve paralisia do sono? Imagine que você acordou de um sonho de manhã cedo e você consegue ouvir todo mundo que está na casa tomando café da manhã e conversando e rindo, mas você não consegue se mexer. Não importa o quanto você tenta, você não consegue se levantar. Você está preso entre o sono e estar acordado.

Você só fica lá, preso dentro do seu próprio corpo enquanto o mundo segue ao seu redor. Isto foi exatamente como eu me senti, só que sem estar na minha cama. Foi na linha de 50 jardas do Cowboys Stadium, cercado de 90 mil torcedores.

Eu falei para mim mesmo, "Deus, me ajude. Eu sei que estou aqui por um motivo. Se você me ajudar a me levantar, Eu vou mudar a vida de outras pessoas."

Foi a segunda vez na minha vida que eu falei isso para mim mesmo.

Eu nunca falei sobre isto antes, mas a primeira vez que fiz essa promessa foi na faculdade. Eu estava conversando com uma menina quando seu namorado veio até mim e apontou uma arma em minha direção. Era um revolver, então eu conseguia ver as balas. Eu não sabia se iria viver ou morrer.

Naquele momento olhando para o barril da revolver, eu falei para mim mesmo, "Deus, me ajude. Eu prometo que vou mudar a vida de outras pessoas."

O cara baixou a arma e nós resolvemos na base da conversa.

No Cowboys Stadium, eu me encontrei pedindo a Deus que ele me salvasse mais uma vez.

É bem louco o que importa para você quando você se encontra nessa situação. Carros, jóias, mansões, Super Bowls? Tudo parece ser insignificante. Eu vim de nada. Não fui draftado, practice squad, cortado de um monte de times e ai cheguei a três Super Bowls seguidos. Eu tenho um ditado, tipo um mantra, "Cem dólares e um sonho." Quando eu cheguei ao training camp do Seahawks como um rookie não draftado, as únicas coisas que eu tinha eram uma mala cheio de roupas, meu par de luvas de recebedor de Fort Valley State e 100 dólares.

Eu queria uma Lamborghini preta, uma casa com sete quartos. Era com isso que eu sonhava.

Agora, do nada, eu não consigo me mexer. E a única coisa que me importava no mundo era poder ver minha família de novo, abraçar os meus filhos.

Ai eu me lembrei de uma coisa que partiu meu coração. Minha filha estava na arquibancada. Era seu aniversário de 10 anos. Era quis vir a Dallas para me ver jogar. Agora ela estava vendo seu papai largado no gramado, cercado de companheiros e treinadores.

Deus, você tem que me ajudar.

Quando seu primeiro filho nasce e você olha em seus olhos a primeira vez, você sente um amor como você nunca sentiu antes. Algo que você nunca sentiu antes.

Bem, foi exatamente o oposto disto. Foi frio, um frio obscuro que eu não sabia que existia. Quando você não consegue se movimentar, existem tantas incertezas que sua mente está correndo a um milhão de milhas por hora. Dez minutos parecem 10 dias. Então da hora que eu tomei a pancada até chegar ao hospital … cara, aquele foi uma viagem bem longa.

Eu nem sabia o que tinha de errado até chegar ao hospital. Depois de um monte de testes, os médicos me explicaram que todos os ligamentos e cartilagem que conectavam minha vértebra tinham sido terrivelmente lesionados. Meu pescoço estavam tecnicamente quebrado. Se os treinadores e o pessoal da emergência tivesse me movimentado da forma errado, ou um companheiro tivesse tentando me ajudar a me levantar, eu poderia ter morrido.

Minha vida estava nas mãos certas. Eu tive uma equipe incrível de pessoas ao meu redor aquele dia e eles salvaram minha vida. Honestamente. eles salvaram minha vida.

Quando eu sentei na cama do hospital com aquele colar cervical enorme, minha filha estava do lado de fora implorando para me ver. Eu ainda estava na minha calça azul escura do Seahawks e minhas chuteiras verde claras. Eu só não queria que ela visse o papai dela daquele jeito. Eu sempre falei para ela, "Seu papai é um rock star. Ele pode fazer qualquer coisa." Porque eu quero que ela acredite que ela pode fazer qualquer coisa.

Me levou uma boa hora para me recompor antes de dizer à enfermeira para deixá-la entrar no quarto. Isso foi mais doloroso que a pancada em si. Foram os piores 60 minutos da minha vida. Eu limpei as lágrimas dos meus olhos e entrei em Modo Papai.

Mas quando ela entrou, meu amigo. Isso é tudo no mundo. Esso é porque você segue lutando.

Eu disse a ela, "Não se preocupe querido. Não é tão rumi assim. Eles vão colocar uma pequena bandagem no meu pescoço e eu estarei bem."

Ela começou a chorar.

Eu disse, "Não se preocupe. Papai vai ficar bem. O que eu sou?"

"Você é um rock star."

"Eu sou um rock star. Eu posso fazer qualquer coisa, e você também pode."

Ela me deu um beijo na bochecha e a enfermeira a acompanhou para fora do quarto.

Eu sabia que aquele era provavelmente a última vez que ela viu o papai dela num uniforme da NFL. Foi muito difícil.

Após a cirurgia para reparar minha vertebra lesionada e algumas semanas de reabilitação, eu estava andando novamente e estavamos jogando basquete de novo. Mas alguns meses depois, no início de maio, eu tomei minha decisão de me aposentar do futebol americano aos 29 anos de idade.

Coach Carroll costumava nos falar o tempo todo: "Você vive em um conto de fadas temporário."

Seus fãs são temporários.

Seus técnicos são temporários.

Seus companheiros, por mais que eles te amem, são temporários.

As casas enormes que vocês vivem são temporárias.

Você pode curtir todas essas coisas, mas não é o que vai te trazer felicidade.

Eu realmente não entendia o que Coach Carroll queria dizer até que eu estava limpando meu armário em casa em Atlanta esse mês. Meus companheiros estavam se preparando para as atividades de treinamento de offseason e eu tinha bastante tempo para sentar e pensar. Um dia eu abrir meu armário e vi toda aquela roupa extra que eu não precisava mais.

Bom equipamente para treinar. Sapatos a mais. Camisas polo do Seahawks.

Eu pensei que já que eu não precisava mais de tudo aquilo, talvez alguem pudesse aproveitar tudo. Então eu enfiei tudo que eu tinha num saco de lixo branco e fui pra rua. Meu condomínio é no centro e tem muitos moradores de rua que procuram abrigo perto do meu prédio, mas eu tenho 1,88m, então nem todos tem o mesmo tamanho que eu. Eu estava andando por ai com um saco de lixo nos meus ombros quando vi um senhor negro que tinha mais ou menos a minha altura. Ele parecia precisar de ajuda. Seus jeans estavam sendo mantidos na cintura por uma corda e ele estava usando uns sapatos antigos de igreja. Ele parecia estar usando eles por uns 10 anos.

Então eu disse, "Ei, licença, você gostaria de algumas roupas?"

Ele ficou tipo, "Ééééééé," meio que olhando em volta, tem alguma pegadinha?

Ele parecia estar perdido. Eu me aproximei e disse, "Bem, olhe, aqui estão algumas roupas para você meu amigo. Estão todas limpas. Eu só quero que você fique com elas."

Ele seguiu sem falar nada.

Eu cheguei ainda mais perto e botei o saco perto dele, e uma lágrima escorreu dos seus olhos.

Eu disse, "Você tá bem, irmão? Qual foi?"

Nós sentamos em um banco de cimento e ele abiu seu coração. Ele desmoronou e me contou toda sua história.

Eu percebi que ele era extremamente inteligente. Ele me disse que tinha um Ph.D., que estava vivendo uma vida normal. Ai, alguns anos atrás, sua esposa, seu filho e seu sobrinho que moravam com ele perderam a suas vidas em um acidente de carro.

Ele disse, "Desde então, eu perdi a vontade de viver. Perdi a vontade de cabelo. Perdi a vontade de escovar os dentes. Não existe outra mulher para mim. Minha família se foi e eu não ligo pra mais nada."

Ele não tinha ideia de quem eu era. Ele não sabia nada da minha história. Eu mal abri a boca. Eu só o ouvi e ele apreciou demais o fato de alguem no mundo se importar e sentar com ele por 20 minutos.

Ele não percebeu o quanto aquilo foi uma terapia para mim também. Durante aquela conversa, tudo fez sentido.

Quando eu estava imóvel no campo de Dallas, eu estava completamente dependente da ajuda dos outros. Eu estava com o pensamento oposto ao que eu tinha quando cheguei aos Seahawks: Você é um rock star. Você é um líder. Você é o alfa. Isso é tudo seu para você tomar.

Ai, em um segundo, você está desamparado.

Eu não estaria aqui contando a minha história se os médicos não tivessem feito tudo perfeitamente para proteger a minha vida. E a generosidade das pessoas seguiu por semanas. O dono do nosso time Paul Allen deu a mim e a minha família acesso ao seu jato particular para que pudessemos ir para casa. Eu recebi milhares de cartas de quase todos os colégios do estado de Washington. Emails, textos, chamadas de FaceTime. Foi muito coisa. A maioria das vezes, você não é apreciado e amado desta forma a não ser que tenha morrido.

Agora mesmo, que estou morando em Atlanta, e não mais em um time, meus amigos estão falando comigo, e de formas muito engraçadas.

Eu falo com o Marshawn Lynch bastante. Ele me mandou um texto outro dia e eu não conseguia parar de rir.

Ele me mandou, "Ai, me perdoe, mano, te deixei na mão."

Eu mandei de volta, "Do que você está falando?"

"Eu te deixei na mão em um daqueles bloqueios."

"???????"

Alguns segundos depois, ele me mandou um vídeo.

Eu toco na tela e aparece um vídeo de jogo da temporada passada. Eu estou bloqueando o linebacker. Eu estou no seu ombro de fora, como eu deveria estar. Marshawn geralmente passa pelas minhas costas. Mas desta vez, ele cortou pra dentro e tomou o tackle.

Ele mandou, "Putz. Foi mal, mano. Eu errei."

Meu mano tá aposentado e ainda está em casa assistindo tape de jogo.

Eu tava tipo, "Tá O.K., cara. Não se preocupe."

Muita gente não conhece o verdadeiro Marshawn. Eles não entendem o tipo de homem que ele é e o que ele faz para a população de Oakland. Meu objetivo de vida é ter apenas 10% do efeito que o Marshawn tem na vida das pessoas.

Quando eu fui enviado ao hospital de Dallas, Marshawn ficou no meu quarto comigo a primeira noite inteira. Esse cara estava me fazendo rir tanto que estava colocando minha vida em risco. Eu to deita em um cama com um colar cervical, tentando ficar imóvel, e eles tá simplesmente sendo Marshawn - conversando com as enfermeiras, fazendo piadas, sendo doido.

Quando eu olhar para a minha vida, o principal não serão os Super Bowls. O que eu realmente vou me lembrar são de momentos como aquela noite no hospital. As risadas e o amor, até nos momentos mais difícies. Entenda, eu estou ali, deitado com um colar cervical, não posso me mexer, acabou de chorar cada lágrima que eu tinha, e tem um cara que só quer me fazer rir para esquecer da dor.

Agora eu só quero pegar esse espírito e essa alegria e espalhar para pessoas que realmente precisam. Eu quero ajudar as pessoas. Como os médicos me ajudaram. Como Marshawn me ajudou. Como tantas outras pessoas me ajudaram ao longo do meu caminho.

Sendo sincero, minha carreira na NFL foi muito rápida. Foi batalha constante para subir uma montanha interminável. Minha missão agora é de ajudar as pessoas a sairem das ruas e se reerguerem da forma que eu puder. Eu preciso fazer isto por Deus que me ajudou a me levantar. Esta é minha montanha. Eu estou de volta à base. Estou subindo e subindo e estou conhecendo pessoas incríveis no caminho. Cada pessoa que conheci, eu to levando ao topo da montanha comigo.

No fim das contas, quando o conta de fadas temporário que Coach Carroll sempre nos contou acabar, nós temos de nos perguntar o que realmente estamos fazendo aqui na terra.

Eu sinto que finalmente sei porque estou aqui.

[Na voz de Marshawn]

"You know why I'm here."

-Ricardo Lockette, Wide Receiver, Seattle Seahawks"

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Pedro Pinto
ZONA FA

Former NFL Analyst @ Esporte Interativo/ Zona FA Analyst /Director of Football Ops @ R.A.M. / Offensive Co. @ Vasco Patriotas / QB Coach @ Brasil Onças U19