Crônica: Gatilho

Vinícius Cassio Barqueiro
Canto em Silêncio
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3 min readApr 16, 2019

Segunda-feira, semana santa, noite quente na capital paulista.

Após um longo dia de trabalho, entro no ônibus a caminho de casa, abro o Instagram e vejo uma foto linda que minha esposa postou.

Na imagem de 2014, nós três iluminados pelo sol do verão europeu. Ju e eu quase espremidos para fazer caber com a gente uma parte daquele sonho vivo.

Que lembrança bonita — penso — inusitada para uma segunda feira comum.

Admiro a foto, sorrio, dou like. Que bela lembrança! Chego na legenda, vou lendo sorrindo, até que…

Instagram, 15/04/2019

《 É uma perda inestimável.》

Perplexo, corro para o navegador e constato segundos depois o que temi: as chamas novamente queimando parte do patrimônio histórico mundial. E eu com um sentimento inexplicável diante disso. Esse gatilho simbólico junguiano que me lembra que tudo pode partir de repente.

Notre-Dame, Paris, 2014

Dia desses um grande amigo que está morando em Paris enviou uma foto maravilhosa. Não foi a torre, nem o arco, tampouco Montmatre: foi Notre-Dame que ele escolheu para me enviar.

Nos mais de dez anos de amizade e de uma comunicação que vai muito além das palavras, nós dois sabíamos toda a emoção que aquela foto representava. Ela é kinfa, ele digitou, e enquanto eu procurava o termo no Google, pensando ser uma nova gíria parisiense, ele corrigiu em fração de segundos: ela é linda.

Whatsapp, 03/04/2019

Três dos livros favoritos do meu filho de três anos são de arquitetura. Uma das suas principais brincadeiras é fazer construções famosas com os blocos de montar. Um dos seus passeios favoritos é pegar o metrô paulistano, descer no Largo de São Bento, venerar o Mosteiro, admirar o Martinelli e passear pelo Altino Arantes. E um dos seus sonhos é - ou era, não sei a melhor palavra - conhecer a Notre-Dame de Paris.

São Paulo, 06/04/2019

Dias atrás no café da manhã:

《 Olha essa foto, filho. Nosso amigo enviou diretamente de Paris. É igual à xícara da mamãe, percebe?

Sim, papai. É a Notre-Dame, né? Um dia… 》

Ele que vê as fotos nas paredes e álbuns da nossa casa e reclama por não ter ido junto. Ele que diz para mim, com voz de consolo, que logo vai virar um adulto, trabalhar e ganhar muito dinheiro para irmos juntos — em resposta a cada negativa que damos aos seus pedidos de conhecer Paris.

Dia desses, neste mesmo mês, fui com ele na Pinacoteca do Estado de São Paulo, na Luz, pouco antes de visitar o biso. De lá, contei como o fogo atingiu recentemente o Museu da Língua Portuguesa e o quanto esse tipo de acontecimento me entristece.

Luz, São Paulo, 06/04/2019

Com seu jeito impetuoso de ir descobrindo a verdade da vida, ele me arguiu:

《 Mas por que pegou fogo, papai? Não construíram com tijolos, só com madeira?

Não sei, filho. Às vezes as coisas tristes são fruto de nosso descuido, mas às vezes simplesmente acontecem.

Mas por que, papai?

Não sei, filho.

Explica, papai, por favor. Por favor!》

Naquele momento eu senti isso que agora volta, esse flamejar de emoções a partir de um gatilho simbólico junguiano. E me vem essa coragem de repetir aqui as palavras de meu filho, sua súplica, as mesmas perguntas que venho fazendo em minhas orações silenciosas ao pai do céu.

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Vinícius Cassio Barqueiro
Canto em Silêncio

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