Os três primeiros andares do shopping de seres humanos

Relacionamentos amororos na contemporaneidade (parte II)

Ana Carolina Santos
Caracoles
9 min readJan 19, 2023

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Crédito: Yuval Robichek (@yuvalrob no Instagram)

Como disse no episódio anterior deste podcast, intitulado “Pessoa líquida, pessoa liquidada”, eu tive certa dificuldade para recortar o tema daquele roteiro. Então ainda tinha muita coisa pra falar sobre relacionamentos amorosos na contemporaneidade. O episódio que você está ouvindo é a parte dois daquele.

Uma coisa que percebi posteriormente é que eu deveria ter explicado o que significam ghosting e curving. Pressupus erroneamente que todo mundo sabe do que se tratam. Ghosting é a prática de você simplesmente parar de responder a pessoa ao invés de comunicá-la de que você não está mais interessada.

Curving é um ghosting mais gradativo. Você sabe que não tá mais interessada na pessoa, mas não simplesmente some. Você responde com cada vez menos entusiasmo e com cada vez mais horas ou dias de intervalo. Com o intuito de não fechar aquela porta. Manter a pessoa ali, disponível para quando você *decidir* que quer ela.

Honestamente, eu acho o curving muuuuuito pior do que o ghosting. No ghosting, você dá um recado claro de que não quer a pessoa. No curving, você dá migalhas de atenção. E, se a pessoa estiver muito a fim de você e não tiver uma autoestima lá muito assentada, ela vai degustar essas migalhas como se fossem uma ceia de Natal num ano em que um dos seus pais ganhou uma bela bonificação no trabalho. Eu sei disso porque já fui a pessoa que se satisfaz com migalhas. “He gives me love kernels…” E posso me orgulhar de nunca ter sido a pessoa que propositalmente distribui migalhas com o intuito de manter alguém interessado em mim.

Olha, antigamente eu era terminantemente contra ghosting. Mas, a essa altura da vida, já fui ghosteada tantas vezes que me dei o direito de ghostear também. Como escreveu Marília Mendonça: “Ninguém vai sofrer sozinho, todo mundo vai sofrer.” Agora, curving… Eu continuo terminantemente contra. “Libera ela / Cê tá roubando tempo, ocupando o espaço do amor da vida dela / Libera ela / Tá atrasando os planos do casório, do cachorro, do neném com a cara dela”, Maiara e Maraísa sintetizaram brilhantemente os efeitos do curving. Libera ela aí, na moralzinha.

Ainda sobre o episódio anterior, preciso fazer uma mea culpa e reconhecer que aquele episódio ficou bastante heteronormativo. Aqui cabe um disclaimer acerca da minha sexualidade: sou pansexual, ou seja, me sinto romântica e sexualmente atraída por homens, mulheres e pessoas não-binárias. Porém, historicamente, eu faço zero sucesso com mulheres, então me relaciono primordialmente com homens. Não por opção minha. Mas por opção delas. Prefiro as mulheres, mas elas não me preferem. Se você é mulher, beija mulheres, mora no Rio de Janeiro e me acha interessante… Me manda uma mensagem… Vamo conversar… 🤪🤪🤪

Okay, no outro episódio, ficou parecendo que eu sou uma girl lixo partidária da liquidez. Não sou. Sou simplesmente uma mulher traumatizada que desenvolveu ferramentas para lidar com seus traumas. Esse episódio é uma defesa das conexões e da escolha por visitar apenas os três primeiros andares do shopping de seres humanos.

Crédito: Yuval Robichek (@yuvalrob no Instagram)

Anos atrás, li o livro “Romance Moderno”, escrito pelo ator Aziz Ansari e pelo sociólogo Eric Klinenberg. Uma das coisas que mais lembro do livro é a tese de que os casamentos do passado duravam mais porque, antigamente, a gente tinha menos opções de parceiros. Ansari e Klinenberg explicam que, antes da popularização da internet, geralmente as pessoas se casavam com gente que elas conheciam nas ruas onde moravam, nos bairros onde moravam.

Hoje, nós temos acesso ao cardápio humano que é o Tinder e os demais aplicativos de relacionamento. A gente fica com a impressão de que tem um mundo de opções. E, por isso, vai descartando pessoas. Porque sempre vai ter outra depois. Nós descartamos até as pessoas com as quais desenvolvemos uma boa conexão.

Um dos meus diálogos favoritos da trilogia “Antes”, do Richard Linklater, acontece no segundo filme, “Antes do pôr-do-sol”. Jesse (Ethan Hawke) e Céline (Julie Delpy) estão caminhando por Paris, nove anos após aquele encontro que tiveram em Viena. Eles ficaram todo esse tempo sem se ver. O Jesse diz: “Meu Deus, por que a gente não trocou números de telefone?” A Céline responde: “Porque nós éramos jovens e burros. Eu acho que quando você é jovem, você acredita que vai haver muitas pessoas com as quais vai se conectar. Com o passar dos anos, você percebe que isso só acontece poucas vezes.”

Eu dou muito valor quando conheço uma pessoa com a qual gosto de conversar. Porque isso não é a coisa mais comum do mundo, você ter um papo que flui sem esforço com um desconhecido. E, por isso, fico meio desgostosa quando a outra pessoa opta por romper essa ligação. “Pô, será que só eu tava gostando de conversar? Mas ela parecia tão engajada na conversa. Ela não ficaria horas conversando comigo se não estivesse gostando, certo?” Aí respondo pra mim mesma: sim, provavelmente ela tava gostando. Mas existem razões que não concernem a mim pra essa interrupção. Não concernem a mim porque a vida é dela. E não concernem a mim porque a culpa da interrupção não foi minha.

Quando uma pessoa que a gente tá gostando de conhecer repentinamente para de interagir com a gente, nós, mulheres, tendemos a nos culpar. Tendemos a tentar encontrar o que foi que fizemos para termos espantado a outra pessoa. Eu fui “fofa” demais. Grudenta demais. Chamei ela pelo nome no diminutivo e ela não gostou. Chamei ela de “baby” e ela não gostou. Ou a gente começa a examinar nossa aparência e apontar nossos supostos defeitos: sou feia, sou gorda, tenho muita olheira, meu cabelo tem muito frizz, meu nariz é esquisito, meu dente é torto e por aí vai. No meu caso, a noia é a seguinte: assim que eu conheço alguém e fico a fim da pessoa, eu a coloco nos amigos próximos do Instagram. E se ela do nada para de falar comigo, sempre fico achando que foi porque eu postei algum conteúdo cringe ou porque eu posto demais sobre a Taylor Swift.

A gente sempre acha que fez algo de errado. Quando, na verdade, é possível que::::::::: ela estivesse conversando com várias pessoas além da gente, tenha gostado mais de conhecer uma das outras e tenha escolhido investir apenas nela (por mais legal que tenha sido a interação com a gente). Pode ser porque ela ainda tenha sentimentos pela ex e não tem disponibilidade emocional para investir em outra pessoa. Pode ser que uma ex tenha ressurgido das cinzas e a deixado balançada. Ou a razão mais simples de todas: ela apenas perdeu o interesse mesmo. Acontece. Como dizia minha vizinha Dona Mercina, já falecida: “É a vida, minha filha.”

Minha amiga Marina Lua (que, a propósito, tem um podcast maravilhoso onde ela relata suas experiências com dates de forma absolutamente linda e poética. Procurem lá o podcast “pega no sono enquanto eu te conto meus surtos”). Pois bem. A Marina me contou, umas semanas atrás, de uma alegoria que alguém criou acerca das diferenças entre homens e mulheres na busca por parcerias amorosas.

De acordo com essa alegoria, as mulheres vão ao shopping dos relacionamentos, que tem 30 andares, e se comportam da seguinte maneira: elas entram no primeiro andar, dão uma olhada. Entram no segundo, dão uma olhada. No terceiro, elas encontram algo de que gostam. E elas ficam por ali mesmo. Compram e vão embora felizes. Já os homens, quando entram no mesmo shopping, passam por todos os 30 andares. Não importa se eles tenham gostado de alguma coisa que viram nos primeiros andares. Eles continuam subindo. Porque vai que tem alguma coisa melhor nos andares acima?

Jerry Seinfeld, um dos criadores da série “Seinfeld”, tem uma piada sobre isso. No começo e no final dos episódios da série, aparecem trechos dos shows de stand up comedy que ele fazia. No episódio 10 da segunda temporada, ele diz assim: “Os homens zapeiam mais pelos canais de TV do que as mulheres. Eles ficam com o controle remoto na mão e nem sabem o que diabos estão vendo. ‘O que você está assistindo?’, ‘Não importa, tenho que continuar.’ As mulheres não fazem isso. Elas param e dizem: ‘Deixa eu ver qual é o programa antes de mudar de canal’. Isso acontece porque as mulheres fazem ninhos, e os homens caçam.”

Vocês podem achar essas duas analogias sexistas e maniqueístas, e são mesmo. Assim como a imagem que eu escolhi pra ilustrar esse episódio. Mas gosto das analogias e gosto da imagem. Respondi a Marina que ajo exatamente como as mulheres da alegoria que ela me contou. Não sinto necessidade de olhar os 30 andares do shopping de seres humanos. A gente acha que as nossas possibilidades são infinitas. Mas isso é só uma ilusão. Sei lá, dos 300 matches que você dá no Tinder, você conversa com 30. Dos 30, você leva a conversa com 10 pro WhatsApp. Dos 10, você tem boas conversas com 4. E dos 4, você encontra dois na vida real. E dos dois, com sorte, 1 vai ser bom. Então, na prática, a gente não tem esses 30 andares.

Eu me sinto muito confortável em visitar apenas três andares, escolher o que quero e ficar em paz com essa escolha. Porque eu realmente não tenho 30 andares. Ainda mais sendo uma mulher fora dos padrões de beleza. Não vivo na ilusão de que tenho um mundo de possibilidades, porque não tenho. Sem mencionar questões para além da aparência física. Conexão intelectual, interesses afins, posicionamento político, princípios etc. Então, quando eu conheço uma pessoa com quem gosto de conversar e por quem me sinto atraída fisicamente, considero uma vitória e me sinto confortável pra permanecer ali e ver que programa tá passando naquele canal.

Acho que o grande desafio da contemporaneidade é encontrar o equilíbrio entre o descarte vazio e a hipervalorização de laços que acabaram de se formar. Você não quer ser como eu e se apegar a alguém que conheceu há três dias, só porque ele tocou umas músicas do Tchaikovski pra você no piano, né? E prometeu aprender a sua música clássica preferida, “Gnossiennes, número 1”, do Erik Satie, né?

Em teoria, eu nunca aposto todas as fichas no mesmo cavalo. Mas, na prática, se eu conheço um cavalo com toda a pinta de que vai ganhar a corrida, eu digo: “cala a boca e toma meu dinheiro”. “Fico olhando pro meu WhatsApp e não tem ninguém com quem eu gostaria de conversar. Não tem ninguém pra quem eu perguntaria ‘como foi seu dia?’ e ficaria genuinamente interessada na resposta.” Escrevi isso às 20:22 do dia 27 de dezembro de 2022, no grupo comigo mesma no WhatsApp. Dois dias depois, conheci, no Tinder, uma pessoa para a qual eu pergunto “como foi seu dia?” todos os dias e genuinamente quero saber a resposta.

Isso foi onze dias depois de publicar o episódio anterior do podcast. E essa pessoa rapidamente fez com que eu tivesse vontade de jogar meus princípios de autopreservação pro espaço e apostar todas as minhas fichas nela. Nunca dá pra gente saber se o cavalo em que a gente aposta vai ganhar a corrida. Mas, como diz um dos meus episódios favoritos de “How I Met Your Mother”: “às vezes, a vida só quer da gente um ‘leap of faith’, um salto de fé.” Uma aposta no escuro. E eu escolho apostar.

Esse seria um lindo encerramento pro episódio. E meu stellium em peixes adoraria tê-lo finalizado dessa forma. Eu queria muito contar pra vocês uma história de amor bem-sucedida. Mas meu stellium em aquário, mais cínico, demanda que eu venha aqui contar como de fato terminou a história com o cavalo em questão. Vamos chamá-lo de “O operador de telemarketing de Realengo” (pois é, ele não tem uma profissão tão charmosa quanto a do pianista da Ilha do Governador). Duas semanas após nos conhecermos, ele levou o dia inteiro pra me responder no WhatsApp. O que não era de seu feitio. Então eu entendi tudo, né?

No momento em que vos falo, ainda tô vivendo o miniluto dessa minirrelação. Mas ainda concordo com tudo que escrevi antes do flop. Ainda acredito na aposta. No salto de fé. Sim, minhas expectativas foram frustradas, mas felizmente eu já havia passado por todo aquele processo que relatei no episódio anterior, então não questionei o meu valor enquanto ser humano do sexo feminino após essa rejeição. Aliás, finalizo este roteiro na sexta-feira, 13 de janeiro de 2023 — olha que dia legal — , e hoje foi um dia em que eu me amei muito. Gravei vídeos, tirei fotos, executei tarefas que antes tava procrastinando… Me senti uma gata AND uma potência intelectual.

Talvez a história de amor bem-sucedida que eu conte pra vocês seja a minha história de amor comigo mesma. Com o perdão do clichê. Mas o clichê é inescapável quando se trata de amor.

(O bom é que agora eu posso focar em costurar e em ouvir Taylor Swift.)

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Ana Carolina Santos
Caracoles

Leitora e escrevedora de transporte público. Faço o podcast Caracoles: https://linktr.ee/santosacarolina