Pessoa líquida, pessoa liquidada

Relacionamentos amorosos na contemporaneidade (parte I)

Ana Carolina Santos
Caracoles
8 min readDec 19, 2022

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Meu padrinho e minha madrinha, no início dos anos 90, em Olaria, Rio de Janeiro

E u cometi uma gafe. Umas semanas atrás, um rapaz começou a seguir meu perfil pessoal no Instagram e curtiu uma ou duas fotos minhas. Daí eu fui lá e curti fotos dele também. Porque esse é o modus operandi do flerte online. E fiquei esperando ele dar sequência à dança: responder um story meu e tal. Só que isso não aconteceu. Então euzinha, que tenho vênus em áries, fui lá e mandei uma DM. Depois do “oi, tudo bem?” protocolar, escrevi: “Me conta de você. Não me lembro de ter visto seu perfil no Tinder.” Ao que ele respondeu: “hahaha vim pelo podcast, não pelo Tinder.”

Minha cara foi no chão, é claro. Em minha defesa, ele começou a me seguir num timing em que os únicos homens com cara de hétero que me seguiam advinham do Tinder. E, como vocês sabem, esse podcast só tem 17 ouvintes regulares – aliás, descobri recentemente que esse número subiu pra astronômicos 43. Te cuida, Mamilos, tô chegando. Mas continuando: como esse podcast é underground (e orgulhosamente underground, diga-se de passagem), eu nunca espero que uma pessoa que começa a seguir meu perfil pessoal o tenha feito por causa do podcast. Claro que eu me sinto super lisonjeada quando isso acontece, né? Achei maneiríssimo que ele tenha me seguido pela minha expressão artística, não pela minha… expressão sexual, por assim dizer. Enfim: amigo, se você estiver ouvindo isso, saiba que eu te valorizo enquanto ouvinte, não apenas enquanto potencial date quando eu achava que você era do Tinder. Um abraço!

Pois bem. Essa confusão se deu porque Vossa Humilde Narradora tem sido bastante ativa no Tinder nos últimos tempos. E, com isso, tenho tido algumas das experiências interpessoais da pós-modernidade. Quero deixar claro que eu nunca li nenhum livro do Bauman, então quando eu uso a expressão “modernidade líquida”, é a partir do conceito comumente usado na internet. Não tenho nenhum embasamento teórico. Apenas as experiências sendo uma mulher cis millennial pansexual no mundo dos solteiros.

Esse tema é tão amplo e tão interessante que eu tô tendo dificuldade pra fazer um recorte. Porque tenho muito a dizer sobre isso. E não apenas do ponto de vista da “vítima”, da pessoa liquidada, por assim dizer. Mas também como a pessoa que descarta, que faz o ghosting, o curving, que bloqueia etc. Falo brevemente sobre isso no primeiro episódio do podcast. Acho que é até meio natural que, depois de tomar umas porradas, você vire porradeira também. Como a história de origem de um vilão da Marvel (risos). A Super Girl Lixo.

Tem uma conta no Instagram, @blcksmth, que posta frases escritas com aqueles balões em forma de letras, sabe? Há algumas semanas, eles postaram a seguinte frase: “você não tem um crush. Você tem problemas de apego, e alguém está te dando atenção.” Eu me senti TÃO atacada na primeira vez em que li isso. Porque é a mais pura verdade. Essa é exatamente a minha experiência. Eu me apego rápido demais a pessoas que acabei de conhecer e depois sofro pelo luto de uma relação que nunca chegou a acontecer.

E é claro que a culpa é toda minha. A pessoa tem todo o direito de perder o interesse – embora eu seja fantástica, e o azar seja dela. 💅🏽

“Você não tem um crush. Você tem problemas de apego, e alguém está te dando atenção.” (Crédito: @ blcksmth)

Vou contar uma anedota. Em meados do ano passado, conheci um rapaz no Bumble — que, pra quem não sabe, é um Tinder melhoradinho. Por mais que eu me esforce, não consigo lembrar o nome dele — o que é uma bela de uma ironia. Fabio? Rafael? Sei lá, deletei essa informação da consciência. [Isso me lembra um episódio de “How I Met Your Mother” em que o Ted não lembra por nada o nome de uma mulher com quem ele saiu, daí ele fica o episódio todo chamando ela de “Blah Blah”. (Uma curiosidade: no último episódio da série, ele lembra o nome dela, e ela se chama Carol, meu nome. E ela vende bolsas online, e eu costuro bolsas, enfim, coincidências.)]

Eu não lembro o nome do cara, então vou me referir a ele como “O pianista da Ilha do Governador”. Porque ele era pianista e morava na Ilha do Governador, caso não tenha ficado claro. E como todas as breves histórias de amor desse século, o início foi mágico. Conversávamos por horas no WhatsApp, fazíamos videochamadas intermináveis em que ele tocava piano pra mim, ele disse que ia aprender a tocar “Forever & Always”, uma música da Taylor Swift que tem uma versão linda no piano, e eu já tava imaginando nossos duetos; eu cantando, e ele, tocando. Enfim, nossa bela história de amor deve ter durado aproximadamente… quatro dias. Até que… ele ficou um dia inteiro sem me responder. E como eu já era pós-doutora em modernidade líquida, já sabia o que isso significava. No dia seguinte, tive terapia e levei isso pra sessão. Queria entender por que eu fiquei o dia todo esperando pela resposta de um cara que eu mal conhecia. Um cara que eu nem conhecia ao vivo, pra piorar. Por que eu fiquei tão apegada e tão rápido? Qual é a origem disso? Bom, o ano era 1994. Tudo começou quando meu pai conheceu a minha mãe e… Brincadeirinha, brincadeirinha.

Essa situação com o pianista da Ilha aconteceu há mais de um ano. Mas eu continuo a ficar ansiosa esperando pela resposta de alguém que eu acabei de conhecer. E, às vezes, nem é alguém por quem eu tô tão interessada assim, sabe? Isso é que é foda. Porque eu já passei por muitos ciclos de ansiedade por alguém que, se eu não amei, cheguei muito perto disso. Então, quando me flagro ansiosa por uma resposta ou conferindo se o crush da vez já olhou meus stories daquele dia, eu me dou um chacoalhão, sabe? Coloco as coisas em perspectiva. Lembro a mim mesma que acabei de conhecer essa pessoa e que ela não tem essa importância toda. É possível que, daqui a um ano, eu nem me lembre do nome dela.

Esses dias, enquanto eu tava nessa espera pela resposta de alguém, um dos meus melhores amigos, o Victor, me deu um conselho maravilhoso: “vai costurar, vai ouvir uma Taylor Swift” (risos). Uma hora o bendito vai responder. Ou não vai. E é isso. Você vai ter que aceitar o ghosting. Lidar com isso. Viver o luto de uma relação que nunca veio a ser.

Sabe, os meus lutos têm sido cada vez mais breves. Ou até inexistentes. Por duas razões. A primeira é que eu nunca aposto todas as minhas fichas em um só cavalo. Okay, eu sei que isso soa horroroso. Mas, na prática, não acho tão ruim assim. O que eu faço é: se eu tô conhecendo uma pessoa e tô animada com a perspectiva de uma relação mais profunda com ela, eu não me furto de conhecer gente nova. Somos solteiras e solteiros. Temos essa prerrogativa. Se parar pra pensar, isso é até bom pra quando você se pegar esperando pela resposta do crush n.º 1: conversa com os outros! Sempre tem um que responde rápido.

E a outra razão é a seguinte: quando você tem uma noção saudável de autovalor, não importa tanto que o seu interesse amoroso não te queira. Eu sei que, falando assim, parece muito fácil. Poof, minha autoestima agora tá elevadíssima, meus problemas acabaram. Pra mim, foi um loooooongo processo. Aliás, ele ainda tá rolando. Hoje, eu me amo e me respeito mais do que há dois anos, mas sei que essa busca nunca cessa. E não é linear.

Uma rejeição é um golpe no ego. E se nossas noções de autovalor não estão lá muito consolidadas, esse golpe pode ser muito duro. Mas, se elas estão indo de vento em polpa, você encarna a Ariana Grande e diz: “obrigada, próximo.” E nem é piada. Às vezes, tem uma fila literal.

Há alguns dias, disse ao meu amigo Victor que sentia que tava me tornando a mulher que eu sempre quis ser. Aí ele perguntou qual foi o segredo. Eu elaborei uma resposta que acho que faz algum sentido. O primeiro passo foi ter sido BEM trouxa por alguém. E ter aprendido com isso. Aprendido que eu não quero passar por aquilo novamente. Então, se tô conhecendo alguém e identifico red flags, coisas que me dão um déjà vu de relações anteriores ruins, já corto pela raiz. Nem deixo chegar ao ponto em que me apaixono.

Meus padrinhos, novamente

Outra coisa que me ajudou nessa caminhada foi ter internalizado que nenhum cara é Deus, nenhum cara foi esculpido perfeitamente pra mim, nenhum cara é “the one”, minha “alma gêmea” ou coisa que o valha. Sim, eu já caí nessa arapuca. Eu sou de peixes, a gente é doidinha assim mesmo. 🤪 Então, como eu não coloco nenhum cara num pedestal, fica muito fácil abrir mão deles ou lidar com uma eventual rejeição.

E isso tem tudo a ver com a noção de autovalor. Antes, eu encarava como um favor alguém me querer, me desejar. Me lembro de uma situação de quando eu tinha 17 anos, logo depois de ter minha primeira experiência sexual. Tava conversando com um amigo e disse: “eu não sabia que era capaz de deixar um pau duro.” Assim, com essas palavras. A minha autoestima era tão mirrada que eu achava que fosse morrer virgem.

Lembrei de outra situação, que rolou anos depois. Eu já tinha 21, tava na faculdade. E, naquela época, existia uma página no Facebook pra que pessoas mandassem cantadas anonimamente pra outros alunos. Aí juntei toda a coragem que havia dentro de mim, toda a minha espirituosidade e mandei uma cantada pro crush da época. Ele achou graça e respondeu o post encorajando a pessoa por trás da cantada a entrar em contato com ele. E lá fui eu catar o pouco de coragem que ainda me restava. Chamei ele prum date e escrevi algo nas linhas de: “olha, Fulano, se você ficou decepcionado com a identidade da sua admiradora secreta, não tem problema nenhum, okay? No hard feelings.” Acabou que a gente marcou o date e se encontrou no Bar da Cachaça, na Lapa. Em dado momento, ele me perguntou, com uma cara bem confusa, por que eu havia escrito aquilo de ele ficar desapontado com a minha identidade. Eu não me via como uma pessoa atraente, mas ele me via e não entendeu de onde veio aquilo. Enfim, as dores e as dores de ser uma mulher fora do padrão de beleza.

Mas voltando: eu achava que era um favor alguém me querer porque eu pensava coisas negativas sobre mim e sobre a minha aparência. Então era um milagre que um “gatinho” (ou um nem tão gatinho assim) quisesse se relacionar comigo. Eu precisava agarrá-lo de todas as formas. Não podia deixá-lo escapar. E hoje eu tenho plena ciência de que possuo muitos atrativos. Físicos e intelectuais. E isso não é arrogância. É uma noção saudável de autovalor :-)

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Ana Carolina Santos
Caracoles

Leitora e escrevedora de transporte público. Faço o podcast Caracoles: https://linktr.ee/santosacarolina