Caracoles

Podcast monológico de uma zillennial enquanto navega a adultez (linktr.ee/caracolespodcast)

Rom-comunismo

16 min readAug 31, 2023

--

Ouça aqui

Ao longo do mês, fiquei pensando em uma das coisas que o Lucas Facó falou quando recomendou este podcast no Rumor, o podcast dele sobre literatura. Ele fez um resumo sobre os temas que eu abordo aqui e, dentre outras coisas, disse: “Ela fala sobre ela mesma.” E eu achei isso muito engraçado. Tipo, que pretensão, né? Que ególatra, narcisista… Uma pessoa que não é influenciadora digital, não tem um número largo de seguidores, não é ninguém na fila do pão falando sobre si mesma num podcast… E, só pra deixar claro, eu achei engraçado mesmo. Não achei ruim, nem fiquei incomodada ou coisa parecida. Fiquei super honrada com a indicação e feliz com tudo que o Lucas disse sobre este humilde podcast.

Isso casou com outra reflexão que eu já tava fazendo antes, que é aquele negócio de “síndrome de protagonista”. Não sei se todo mundo tá familiarizado com esse conceito. Ele costuma vir com uma conotação negativa. Geralmente associam isso àquele tipo de gente ensimesmada, autoabsorvida, autocentrada, que tem certo desdém pelos interesses e bem-estar alheios. Que só olha pro próprio umbigo. Que se acha o sol. A vida da festa. A pessoa mais importante do recinto.

Mas, pra mim, a síndrome de protagonista é algo mais positivo do que negativo. Ser a protagonista da própria vida é uma postura. Uma postura que não é natural pra muita gente. E eu faço parte dessa trupe. Historicamente, fui condicionada a ser subserviente, abnegada e colocar as necessidades dos outros acima das minhas. E sei que isso rola com muitas mulheres. De todas as cores. Tem muito a ver com aquilo de ser uma “agradadora de pessoas” que eu comentei no episódio passado. E abraçar o protagonismo da própria vida passa por “dar chatura” nos outros. Defender seus próprios interesses e opiniões quando você julgar necessário.

Pensando sobre o fato do meu podcast ser sobre mim, cheguei à conclusão de que uma pessoa como eu não apenas tem todo o direito de falar sobre si, como é desejável, numa sociedade como a nossa, que ela o faça. Quantos podcasts monológicos de pessoas negras e/ou periféricas você conhece? Eu conheço pouquíssimos. Se eu não fosse dona do meu podcast, adoraria ouvir um podcast como o meu (acho que já falei isso em outro episódio. Enfim, seja sua própria hype girl. Ou hype boy. Ou hype pessoa não-binária *emoji de brilhinho*).

Mas continuando. Eu ia querer ouvir as experiências de uma pessoa como eu. Ia querer ouvi-la falando sobre morar na periferia de uma grande cidade do Brasil. Sobre perrengue no transporte público. Sobre acessar a universidade pública sendo uma pessoa periférica. Ser uma mulher negra nessa sociedade. Ser uma mulher gorda nessa sociedade.

Uma pessoa branca já tem meio que naturalmente esse senso de autoimportância. Ela nunca duvidou de que merecesse ser ouvida, ser lida, ter suas opiniões levadas em conta.

“Ah, Carol, mas você só quer ouvir gente que é parecida com você? Você só quer se ver nas coisas? Cadê a alteridade?” Não. Não é isso. Mas, assim… É uma emoçãozinha diferente quando você descobre uma produção feita por uma pessoa que entende como é sua vida, que entende pelo que você passa. Tipo, nós não somos personagens de ficção. Nós somos pessoas. E conexão humana é tudo que a gente busca. É diferente quando conhecemos uma pessoa com quem a gente se identifica nos níveis mais profundos. É disso que eu tô falando. Podcasts são feitos por pessoas.

Eu gosto muito de podcasts de mulheres brancas. Acompanhava o “Calcinha Larga” com muito afinco. Atualmente ouço toda semana o “Gostosas Também Choram”, da Lela Brandão, que é uma designer de roupas e criadora de conteúdo digital. O trabalho dela é bastante fundado no feminismo, na positividade corporal e tal. E é muito interessante ter contato com as perspectivas dessas mulheres. Mas, em geral, elas são brancas, paulistanas e de classe média. Então existe um limite aí. Algo que eu não consigo acessar na narrativa delas. Eu me relaciono do ponto de vista antropológico. Da curiosidade.

Mas muita coisa não me contempla. Elas falam de perrengues em viagens internacionais, por exemplo. O mais longe que eu já fui foi pra Bahia, quando era criança. Quando elas falam sobre vida adulta, falam sobre terem tirado a carteira de motorista aos 18 anos. Esse grande marco de adultez que é comprar um carro. Ora, o meu marco de adultez foi deixar de cursar o ensino médio no meu bairro pra fazer faculdade na zona sul, pegando dois ônibus pra ir, dois pra voltar e passando mais de quatro horas diárias no trânsito. Ao invés da chave do carro, eu portava um bilhete único. E falo essas coisas sem um pingo de autocomiseração. São apenas fatos. Quer queira, quer não.

Adoraria que mais mulheres da minha idade, da minha cor e da minha classe social tivessem seu próprio podcast e falassem sobre as dores e as delícias de ser quem elas são. É isso que eu tô fazendo. O meu podcast é uma autoinvestigação, uma autodescoberta da segunda metade dos meus 20 anos. Quando falo de mim, falo da sociedade. De como a sociedade trata pessoas como eu. Honestamente, eu não peço desculpas por falar sobre mim.

Lembrei de uma parada que aconteceu no BBB 21. Uma anedota que passou quase despercebida pela internet, exceto por algumas influenciadoras negras. A certa altura do programa, rolou uma dinâmica em que os participantes tinham que elencar quem era o protagonista, quem eram os coadjuvantes e quem eram os figurantes daquela edição.

Quando chegou a vez da Carla Diaz, uma atriz branca e loura, ela colocou a si mesma como a protagonista da edição, e a influenciadora digital Camila de Lucas, que é negra, como coadjuvante. Na justificativa, Carla disse, em tom elogioso, que Camila era a melhor amiga da protagonista. Na cabeça dela, ela tava fazendo um agrado à Camila. Na hora, aquilo me incomodou. Porque lembrei de todos os filmes, todas as séries que são protagonizadas por mulheres brancas que têm como sidekick uma melhor amiga negra. Esse é um tropo, um clichê da ficção. Mulheres negras raramente são as protagonistas. A Manic Pixie Dream Girl nunca é negra.

Inclusive, até hoje, em mais de 80 anos de Oscars, apenas uma mulher negra venceu o Oscar de Melhor Atriz: a Halle Berry, em 2002, por “Monster’s Ball”. Desde então, mais de 20 anos depois, nenhuma outra atriz negra repetiu o feito. Jennifer Hudson, Mo’Nique, Octavia Spencer, Lupita Nyong’o, Viola Davis, Regina King e Ariana DeBose venceram na categoria Melhor Atriz Coadjuvante. Mas eu tô falando das protagonista dos filmes. Se atrizes negras raramente são as personagens principais de produções audiovisuais, como elas vão chegar a disputar e a vencer um prêmio como esse?

Eita como romantiza a vida (Araruama, agosto/23)

Um jeito inofensivo de exercer a síndrome da protagonista é “romantizar a própria vida”. Que é basicamente tentar enxergar beleza no cotidiano ou fazer umas coisas que você normalmente não faria no dia a dia, apenas pelo prazer da cena. O prazer de fingir que é a personagem de um livro, de um filme ou série. Tem gente que compra flores pra si mesma. Toma um cappuccino numa cafeteria enquanto escreve no diário (euzinha) ou enquanto digita no notebook e finge que tá escrevendo o romance brasileiro do século. Ou tá de fato escrevendo o romance brasileiro do século.

Por exemplo, eu tô me sentindo uma protagonista neste exato momento porque tô escrevendo esse roteiro na sacada da casa de praia que meus avós alugam na Região dos Lagos, no estado do Rio. É um dia frio e chuvoso de um agosto que mais pareceu o verão do hemisfério norte. Editora, põe pra tocar “august”, da Taylor Swift aí, por favor. “Salt air and the rust on your door” — mentira, eu não vou fazer isso com vocês.

No meu filme, eu sou uma dessas escritoras que se enfiam numa casa no lago pra finalmente terminar um romance no qual já tão trabalhando há muito tempo. Geralmente, esse é o enredo de um filme de suspense ou de terror. Mas, na minha vida, eu sempre escolho estar numa comédia romântica. Mesmo que não exista comédia. Nem romance. Eu invento. Tal qual Ted Lasso, da série de mesmo nome, sou rom-comunista. Aliás, recomendo demais “Ted Lasso” pra quem tá órfão de uma série de comédia leve e benigna. É engraçada, fofa e reflexiva. Tá na Apple TV.

“Senhores, acreditar no rom-comunismo tem tudo a ver com acreditar que tudo vai se resolver no final.” (LASSO, Ted)

Então, nessa comédia romântica em que sou uma escritora numa casa no lago, tem um vizinho fazendo obra na casa dele e, portanto, produzindo um barulho infernal. Pensa naquele barulho de Makita. Pois é. Isso prejudica a concentração na escrita do meu livro, certo? Aí eu vou lá reclamar com ele, e é claro que ele é gatíssimo, e a gente vive aquele clichê do “enemies to lovers”, de inimigos a amantes. Mas, pra falar a verdade, o meu clichê preferido é o “friends to lovers”, de amigos a amantes. Afinal, um bom romance começa com uma boa amizade. E um romance ruim começa com rah rah ah aha ha, roma romama. Okay, eu não vou fazer isso com vocês de novo.

Eu sou muito partidária de forçadamente romantizar a própria vida. É uma pausa bem-vinda do piloto automático em que a gente vive. Se a gente não tiver esses momentos de romantização forçada, nada nunca tem graça nenhuma. A gente vai seguir engolida pela rotina estafante e/ou enfadonha que não faz sentido pra boa parte de nós.

Uns dias atrás, vi uma publicação que dizia “Faça coisas que te trazem alegria”. Uma obviedade sem tamanho, certo? Mas algumas obviedades precisam ser reforçadas, porque, de tão óbvias, a gente acaba esquecendo delas. Tipo, a gente se habitua a tudo. Até às coisas desconfortáveis. Eu fiquei muito tempo habituada ao sofrimento, à angústia. Era um lugar conhecido, apesar de desconfortável. De vez em quando me flagro nesse apego ao mal-estar. Então preciso me lembrar de fazer coisas que me dão prazer.

Por que eu não faço mais essas coisas? O que tá me impedindo? O que tá me impedindo de dar uma caminhada pelo Centro e percorrer lugares que acho lindos, que me inspiram? Ir a um museu e ver uma exposição massa? Eu nunca tive problema em fazer coisas sozinha, então a falta de companhia não é um impeditivo. Claro que caminhar pela cidade falando amenidades com seu interesse amoroso e encenar os filmes “Antes do amanhecer” e “Antes do pôr-do-sol” são o ápice das minhas fantasias rom-comunistas. Mas as cenas em que a protagonista tá sozinha e reflexiva são igualmente importantes! É nessas cenas que ela toma as decisões que vão alterar o curso da vida dela!

Encarar a própria vida como se estivesse vivendo uma série ou um filme pode ser uma boa maneira de dar um zoom out. De se distanciar e tentar observar a própria vida de outro ponto de vista. A Nathalia Cruz, que é uma atriz, comediante e roteirista incrível, tem um vídeo ótimo sobre isso.

Aqueles momentos difíceis pelos quais a gente passa são o ápice da série. São o episódio 9 das temporadas de “Game of Thrones”. São o Casamento Vermelho, a Batalha dos Bastardos. Fases desafiadoras são artifícios de roteiro. Viradas narrativas pra levar emoção aos telespectadores. Tipo, “Ah, eu tô na merda, mas o meu público tá entretido. Quer dizer que o roteiro tá bom. Tá engajante. Eu tô me fodendo aqui, mas o episódio dessa semana tá topperson. Vai bater recordes de audiência.”

Outra coisa em que esse teatrinho ajuda na vida prática é refletir sobre o seguinte: se eu estivesse assistindo à série da minha vida, eu gostaria desse interesse amoroso? Eu acharia que ele é bom pra protagonista? Eu shipparia eles dois? Porque, se a gente gosta de uma personagem, a gente quer que ela seja feliz no amor, que ela seja bem tratada, amada da forma que ela merece. A gente não vai torcer pra ela ficar com um babaca que trata ela mal, que faz joguinhos, que não quer assumir um namoro com ela… Então, se você não gostaria que a sua personagem preferida ficasse com um Zé Ruela desses, por que você, você mesma, pessoa de verdade, quer ficar? Hm. Dando esse zoom out, você consegue ver que esse mocinho tá mais pra vilão. Ou melhor ainda: figurante. Extra. Fez uma pontinha e tchau.

Aliás, o que esse personagem que é da primeira temporada ainda tá fazendo na série? Já tamo na quarta temporada, tá na hora de mandar ele pastar. Se fosse numa série de verdade, esse cara já tinha morrido, já tinha se mudado pra Suíça pra trabalhar num hospital especializado em cirurgias cardíacas. Deixa ele lá na primeira temporada, que é de onde ele nunca deveria ter saído. E, às vezes, rola o contrário, né? Um personagem que fez figuração na primeira temporada retorna à série e vira uma peça importantíssima nas temporadas seguintes. Esses plots são bem legais. Às vezes, aquele personagem por quem a gente não dava nada acaba virando tudo.

Eu tô completamente ciente de que li livros demais e assisti a comédias românticas demais e que isso afetou diretamente a forma como eu me relaciono com o mundo e com os indivíduos que o compõem. Inclusive, já ouvi de três pessoas diferentes, em ocasiões diferentes, que eu pareço uma personagem de livro ou filme. É. Tem uma citação do Caio Fernando Abreu que eu nunca esqueci. É de um conto chamado “Os sobreviventes”, que aparece no livro “Morangos Mofados”: “Cultura demais mata o corpo da gente, cara. Filmes demais, livros demais, palavras demais.”

Tendo consumido cultura demais nos meus anos de formação, acabou que essas produções meio que moldaram meu caráter. Uma delas é uma comédia romântica indie que considero o meu filme favorito da vida. Ela se chama “Dream for an Insomniac”. Em tradução literal, é “Sonho para uma insone”. Mas, no Brasil, recebeu o nome “Alma de Poeta, Olhos de Sinatra”, que eu não acho ruim, propriamente. Saiu em 1996 — coincidência ou não, o ano em que eu nasci. Foi escrito e dirigido pela Tiffanie DeBartolo, que hoje é autora de livros e meio que finge que o “Alma de Poeta” nunca existiu.

Meu queridinho

Então, o meu filme favorito da vida é objetivamente ruim. Tô falando isso porque ele foi super gongado pela crítica da época e quase ninguém gosta dele hoje em dia também. Enfim, é um flop. Mas eu, pessoalmente, não consigo enxergar essa ruindade. Pra mim, ele é perfeito. E a cada reassistida, ele cresce ainda mais.

Vamos ao enredo: a protagonista é a Frankie, uma jovem branca de uns 23 anos, que mora em São Francisco, trabalha numa cafeteria (sempre uma cafeteria) e sonha em ser atriz. No começo do filme, ela já tá de malas prontas pra ir morar em Los Angeles e perseguir esse sonho. A melhor amiga dela é interpretada pela Jennifer Aniston, que, àquela altura, já era um fenômeno com “Friends” (aí, ó, outra cafeteria. O Central Perk). Curiosamente, a protagonista não é a atriz mais famosa. Quem faz a Frankie é a Ione Skye.

Pois bem. A Frankie tá super animada pra se mudar pra LA, e o pessoal da cafeteria já tá fazendo entrevistas pra achar um substituto pra ela. Um desses candidatos é ninguém mais, ninguém menos que::::::::::::::::::: ele mesmo, o interesse amoroso. David Schraider. A cena em que eles se veem pela primeira vez é uma das mais cafonas da história do cinema ocidental. Digo isso sem dor alguma. Eu amo aquela cafonada. Não vou contar como é porque é legal quando acontece. Te pega desprevenida, sabe?

A propósito, eu vou deixar um link na descrição do episódio pra uma pasta no Google Drive em que eu coloquei o filme e a legenda em português. Ele não é super fácil de achar online, então eu tento disseminá-lo ao máximo através da pirataria. Até poucos meses atrás, tinha a versão dublada no YouTube, mas tiraram, infelizmente. Aproveitando o ensejo, quero recomendar a trilha sonora do filme também. É uma viagem noventista muito gostosinha.

Mas seguindo: a gente fica achando que o grande conflito daquele potencial casal é o fato de que ela tá se mudando de cidade. Mas existe outra hamartia (como podem ver, eu amo essa palavra): o David conscientemente omitiu a informação de que tinha uma namorada. Uma namorada de longa data, aliás. Claro que isso joga um Aquífero Guarani no chopp da Frankie, né? A gata já tava entregue às ilusões, perdida nos olhos verdes/azuis do David.

E o que ela faz? Desiste do moçoilo e vai pra Los Angeles com aquele gosto ruim do “quase” na boca? Não! Ela é a protagonista do filme! Ela é a senhora de seu destino! Então ela decide tentar mostrar pro David que eles têm tudo a ver, que o que rolou ali foi um encontro de almas e que o relacionamento dele com a Molly Monday é chocho, capenga, manco, anêmico, frágil e inconsistente. Sim, o sobrenome da namorada é Segunda-Feira. Coitada, foi criada pra gente não torcer por ela.

Eu disse lá atrás que “Alma de Poeta” moldou o meu caráter, né? Mas eu juro que jamais cortejaria um cara comprometido. Eu espero ele terminar primeiro. Como diz aquele meme: “nem meu ficante, nem meu conversante: meu esperante (tô esperando terminar)”. Aí ele termina e você fica livre pra ir à luta. Mas sem rogar praga no relacionamento alheio, menines. A gente quer que o carma seja nosso namorado, não nosso inimigo.

O que eu admiro na Frankie é o ímpeto. Essa coisa de batalhar pelo que você quer. Ir lá e fazer. Tentar, pelo menos. Ela pode não ser a pessoa mais ética do mundo, mas tem postura de protagonista. Ela não fica lamentando a falta de sorte, o timing ruim, “ai, se eu tivesse conhecido ele antes…” Não. Ela tem um bom pressentimento sobre esse cara e é sincera com ele quanto ao que sente. E ele se permite ser conquistado. Ela talvez seja a vilã do filme da Molly Monday. Mas é a protagonista do filme dela. E a Manic Pixie Dream Girl do filme do David.

Trazendo pra vida real, a gente fica nessa fantasia de que vai ser encontrada, descoberta… Tipo, você vai tá andando no shopping e um recrutador de elenco vai te olhar e dizer “você é o rosto perfeito pra essa peça que eu tô montando”. Ou alguém vai ter ver cantando no karaokê e dizer “nossa, você tem a voz perfeita pra essa banda que eu tô criando.” Ou alguém vai tropeçar nos seus escritos online e vai te oferecer um contrato de publicação de um livro. Naaaão! Você tem que fazer acontecer! Isso é síndrome de protagonista. Você tem que ir lá organizar seu original e mandar pra todas as editoras que você conhece e gosta. Então essa é a minha campanha hoje. Veste a carapuça da protagonista e não fica esperando ser descoberta. Por que quais as chances de isso acontecer? Quase nulas.

Eu sei que deve ter gente que tem esse ímpeto naturalmente. Sei lá, gente que tem muito fogo no mapa astral. Eu não tenho. Me falta fogo. Meu natural é ter uma postura mais passiva, mais contemplativa perante a vida. E eu tô aprendendo agora, nos últimos anos, a realmente fazer acontecer por mim mesma. Fazer os projetos que quero fazer. Esse podcast é um exemplo disso. Se você quer cantar, quer ter uma banda, senta a bunda na cadeira, abre o YouTube, aprende a tocar violão e cria essa banda. Não fica esperando ser descoberta por três caras, um que toca guitarra, outro que toca baixo e outro que toca bateria. Você tem que ser a dona da banda. Igual à Mother de “How I Met Your Mother”. Ela que criou a banda, então ela tinha o poder de demitir um integrante que tava azucrinando a vida dela. Protagonista. Apesar de só ter aparecido na última temporada e só ter existido pra realizar o sonho do Ted de ser um pai de família.

Falando nisso, bora falar do tropo da Manic Pixie Dream Girl. Não existe uma tradução exata pro português. Ao pé da letra é “garota fada maníaca dos sonhos”. Só que isso soa horroroso. Gosto mais de “garota dos sonhos excêntrica”, que é uma adaptação que vi num vídeo do canal Aprofundo, no YouTube. O Lucas Reichert, que faz o canal, deu uma definição muito certeira pra esse termo: “Manic Pixie Dream Girl é um estereótipo de personagem feminina que surgiu no cinema, especialmente nas comédias românticas. É retratada como uma jovem única, peculiar, frequentemente descrita como ‘doidinha’. É um objeto de fascinação pro protagonista masculino. A solução pros problemas dele ou alguém que vai transformar sua vida de forma mágica e inspiradora.”

Essa expressão foi cunhada em 2007 pelo crítico de cinema Nathan Rabin, pra se referir à personagem de Kirsten Dunst no filme “Tudo Acontece em Elizabethtown”. Mas acho que a atriz que melhor representou esse fenômeno foi a Zooey Deschanel, que fez “500 Dias Com Ela”. O Tom (Joseph Gordon-Levitt), protagonista do filme, é bem esse cara melancólico e deprimido que encontra na Summer, personagem da Zooey, esse raio de sol, essa peça que faltava na vida dele.

Ela canta fofo no karaokê, ela só veste azul, ela é a Manic Pixie Dream Girl

O grande problema da Manic Pixie Dream Girl é ela existir apenas como recurso narrativo pro desenvolvimento do protagonista masculino. Geralmente ela não tem profundidade, nem motivação própria. Ela é uma fantasia escrita por homens. Sem mencionar toda a problemática racial que eu já mencionei lá atrás. A Manic Pixie Dream Girl é sempre branca e magra porque esse é o biotipo mais valorizado e desejado pelos homens.

Pesquisando pra escrever esse roteiro, encontrei muuuuitos artigos de mulheres brancas criticando esse tropo e dizendo quão nocivo ele é pra representação feminina no cinema. E eu não discordo disso. Porém não deixo de achar curioso como a questão racial sempre se sobrepõe à de gênero. É simplesmente um fato. As mulheres brancas estão gritando: “Eu não sou uma Manic Pixie Dream Girl!!!11” Já as mulheres negras estão dizendo: “Eu também posso ser uma Manic Pixie Dream Girl”. Claro que eu não tenho a pretensão de falar em nome de Todas as Mulheres Negras do Mundo. Mas, cara, a gente não tem nem essa representatividade que as mulheres brancas julgam ruim. A gente não é objeto de fascínio. É, no máximo, de lascívia.

Lembrei daquele discurso da Sojourner Truth, uma ex-escravizada americana que virou oradora abolicionista. Esse discurso ficou conhecido como “Ain’t I a woman?” (“E eu não sou uma mulher?”, em português) e foi feito em 1851, numa Convenção de Mulheres. “Aquele homem ali diz que as mulheres precisam ser ajudadas a entrar em carruagens, e erguidas para passar sobre valas e ter os melhores lugares em todas as partes. Ninguém nunca me ajudou a entrar em carruagens, a passar por cima de poças de lama ou me deu qualquer bom lugar! E eu não sou uma mulher? Olhem pra mim!” Esse é só um trecho. Vale muito a pena ler na íntegra.

Eu sou a Manic Pixie Dream Girl da minha vida. Que é manic de verdade, não apenas por charminho. Com uma personalidade complexa e que não existe apenas como dispositivo narrativo pra um personagem masculino. O protagonista não é um cara X, com uma profissão Y, que mora num bairro Z do Rio de Janeiro. A protagonista sou eu.

Instagram: @caracolespodcast
Disponível no Spotify, YouTube, Google Podcasts, Apple Podcasts, Deezer, Amazon Music, Orelo e outras plataformas de streaming.

--

--

Caracoles
Caracoles

Published in Caracoles

Podcast monológico de uma zillennial enquanto navega a adultez (linktr.ee/caracolespodcast)

Ana Carolina Santos
Ana Carolina Santos

Written by Ana Carolina Santos

Leitora e escrevedora de transporte público. Faço o podcast Caracoles: https://linktr.ee/santosacarolina

No responses yet