Quadros de uma guerra particular

Carla Rodrigues
Carla Rodrigues
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5 min readAug 17, 2017

Quero tentar articular aqui o que me parecem ser dois acontecimentos da semana: a criação, no jornal popular Extra, de uma editoria de guerra, justificada com o argumento de que “isso não é normal”, entendendo por “isso” a quantidade brutal de homicídios, em grande maioria perpetrados por policiais militares contra população civil inocente; e a manchete de O Globo desta quinta-feira, 17: “Um em cada três PMs mortos no país é do Rio”. A primeira coisa a dizer é que a minha hipótese de articulação independe do que tenham sido as motivações dos dois jornais. Proponho uma interpretação com a qual o meu leitor pode concordar ou não, mesmo que os respectivos editores contra-argumentem que não era essa intenção. De fato, a intenção é minha.

Há muito tempo me espanta a indiferença do governo do Estado em relação às mortes de policiais em serviço. O espanto vem da constatação da diferença entre a importância que os governos fluminenses parecem querer conferir à segurança pública e a desimportância das perdas em combate, para usar o vocabulário de guerra. É difícil, por exemplo, encontrar um governador de Estado no enterro de um PM assassinado. Na maioria das vezes, a autoridade máxima presente é o comandante do Batalhão no qual servia o policial, o que termina por configurar aquela perda como exclusiva para a comunidade a qual ele pertencia. Família próxima e amigos completam a cena, em geral marcada pela indignação com a falta de condições de trabalho. Há, pelo menos no Rio, o fato de que a maioria da tropa militar é formada por pessoas oriundas das camadas mais pobres da população, e portanto o desprezo público por essas mortes poderia ser atribuído a um fenômeno mais amplo de desqualificação de todas as vidas enquadradas como sem valor. É em parte essa desvalorização institucional que justifica as ações de retaliação empreendidas pela polícia nos territórios onde os policiais são assassinados, mas não apenas.

É crescente o apelo por parte dos policiais militares por reconhecimento das vidas perdidas no que o Extra chamou de guerra. E em alguma medida a PM fluminense tem encontrado esse reconhecimento mais nas páginas dos jornais do que na política do estado, mesmo quando não encontra nas ruas. É nesse contexto que me parece interessante marcar a manchete de O Globo como um acontecimento, uma espécie de obituário póstumo a todos os PMs mortos no Rio. A manchete pode ser lida como um apelo contra o assassinato dos policiais e, ao mesmo tempo, um clamor contra o descaso com a vida desses policiais que, em combate, supostamente protegem as vidas dos leitores de O Globo. Em contrapartida, seriam os leitores do Extra os que morrem todos os dias como alvo das ações arbitrárias da polícia. De um lado e de outro, ambos os jornais estariam falando com seu público e querendo dizer a mesma coisa: a vida de vocês, leitores, é passível de luto e reconhecimento público.

Se a vida de um policial militar que deveria atuar na proteção da sociedade não for enquadrada como uma vida que tem valor para esta sociedade, é mais ou menos fácil de concluir que a vida a ser protegida por este policial também não vale muito. Daí se pode explicar os crescentes métodos individuais e privados de proteção: grades nos prédios, câmeras de vigilância, vida em condomínios fechados, segurança privada nas calçadas, cancelas e guaritas fechando ruas, carros blindados etc. Na leitura mais convencional, esses são símbolos de medo; na minha interpretação, posso pensar esses elementos como indicadores da absoluta ausência de reconhecimento do trabalho da polícia como o que deveria ser um serviço público de proteção da sociedade.

Uma das motivações para a filósofa Judith Butler escrever “Precarious life” (2004, ainda sem tradução) e “Quadros de guerra — quando a vida é passível de luto” (Civilização Brasileira, 2015) foi a guerra dos EUA contra o Iraque depois do 11 de setembro. Ela percebe a diferença de enquadramento da perda dos soldados e dos prisioneiros mortos e torturados nas prisões; as primeiras, vidas vivíveis e passíveis de luto, as segundas, vidas matáveis e sem reconhecimento como vidas perdidas. O uso do conceito de enquadramento, elaborado pelo sociólogo Erving Goffman para refletir sobre os diferentes modos como a imprensa enquadra os acontecimentos que noticia, se justifica no meu argumento, na medida em que penso que tanto O Globo quanto o Extra estão enquadrando os fatos sociais a fim de configurá-los segundo interesses editoriais específicos, porém não distintos. Fazem parte do mesmo enquadramento da realidade social como caótica, a exigir medidas de exceção.

Isso que Butler diagnostica como “distribuição desigual do luto público” aparece, no caso brasileiro, como um problema a mais. Embora seja fácil elencar as inúmeras razões para não sermos capazes de dar nenhuma valor à instituição policial, é preciso mais uma dobra para tentar entender porque a polícia não tem valor sequer para os estados que as comandam. As democracias modernas dependem da polícia, das forças armadas e do ordenamento jurídico para se manterem funcionando, seguindo o diagnóstico do filósofo Walter Benjamin feito há quase cem anos. No Brasil e no Rio de Janeiro, braço armado do estado, a Polícia Militar tem atuação violenta, arbitrária e, principalmente, poder de matar em nome da “manutenção da ordem pública”.

Meu argumento é que, para que a polícia militar continue tendo a liberdade total de atuação nesta guerra, e portanto a autorização para matar qualquer um a qualquer tempo sob qualquer pretexto, é preciso também que essas mortes não sejam passíveis de luto, porque é preciso que a sua institucionalidade seja o mais fraca possível para que a corporação possa continuar agindo do modo mais violento possível. Essa fraqueza, ao mesmo tempo que garante a violência da PM, também permite que a palavra guerra seja empregada como se esta fosse uma guerra entre a polícia e os bandidos, na qual uma população civil muito específica — pobres, negros, moradores de favelas –e um contingente militar também muito específico morrem como meros danos colaterais.

Se essas perdas — tanto da população civil quanto da militar — não são passíveis de luto é porque a essas vidas não se atribui valor social, público ou político. Pensar nisso leva, então, a uma pergunta inevitável: a quem serve a guerra? Ou, para usar os termos do editorial do Extra, a que se presta amplificar a percepção de um cotidiano em que nada é normal? Criar um estado de exceção para administrá-lo é uma forma de governo na qual todos os esforços — federal, estadual, municipal — são empreendidos para um problema que não existiria se não tivesse sido posto lá a fim de ocultar problemas reais para os quais não as políticas públicas ficam no papel, simulacros de governo, confirmando os piores prognósticos de Walter Benjamin, para quem a degradação da polícia é o fracasso da política. No Brasil e no Rio de Janeiro, a degradação serve ainda para confirmar a substituição do projeto original de criação da polícia, ainda no século 17, assim identificado pelo filósofo Michel Foucault: “A polícia deve assegurar-se de que as pessoas vivam.”

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