O problema não é o futebol feminino, e sim o tratamento que dão para o futebol feminino

Venceram mais um título, mas não as velhas barreiras que o esporte enfrenta

Henrique de Moraes
Carlos Kill Mag
6 min readAug 10, 2018

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Seleção Brasileira erguendo a sétima taça em oito edições da Copa América. Foto: Sputinik.

Falar que o futebol feminino “não traz público”, ou que elas “não sabem jogar” ou então que “é chato” e, por esses motivos, ninguém se interessa no esporte é uma ideia batida. É notório que isso não é realidade há tempos. Construir uma narrativa edificada nestes três jargões — ou variações deles — para justificar a diferença no trato desta modalidade é um ultraje que não se sustenta. No desenvolvimento deste texto trarei diversos dados que visam esclarecer este cenário e, possivelmente, ajude em alguma medida a derrubar esta barreira que os amantes e as amantes de esportes possam vir a ter. Discutamos então.

Em Abril de 2018 a Seleção Brasileira teve um aproveitamento de 100% na sua campanha que culminou na conquista da Copa América, realizada no Chile. Foi o sétimo título conquistado em 8 edições — sendo que apenas o título de 2014 não foi invicto. Além da taça, o time garante vaga para a próxima Olimpíada — que será realizada em Tóquio, no Japão em 2020. Os números da seleção nesta campanha vitoriosa foram: Enfrentaram duas vezes a Argentina e os placares foram de 3x1 e 3x0, respectivamente; contra o Chile 3x1; já contra o Equador o placar foi mais largo: 8x0. Contra a Venezuela 4x0 e, por fim, contra a Bolívia foram 7x0. 31 gols marcados e 2 sofridos e pelo menos 3 gols por partida! Um título incontestável. E, mesmo com todos estes números positivos, a repercussão não foi equivalente ao desempenho da seleção. E isso não é de hoje pois, se a Seleção tem problemas para aparecer na mídia — mesmo com um feito como este — , o que dizer dos clubes comuns? Já adianto: o cenário que o esporte esta inserido é de desinteresse tanto quanto o da seleção, só que com horários piores.

Futebol é muito bem visto pelos brasileiros e brasileiras de forma geral. Isso não é nenhum dado novo. E quem gosta de ver aos jogos, normalmente, prefere ir até ao estádio para apreciar o evento. Mas este possibilidade é dificultada, pois os jogos delas são normalmente às 15h, numa quarta-feira ou quinta-feira. E o cenário piora: em 2018 o campeonato brasileiro perdeu o único patrocinador que tinha, que era o da Caixa. Deste modo, o esporte não é mais televisionado por nenhum canal. Um ano atrás, na época do patrocínio, era transmitido alguns jogos pelos canais SporTV e TV Brasil. O coordenador de futebol feminino da CBF, Marco Aurélio Cunha, disse ao portal Dibradoras“tenho certeza que se alguém quiser transmitir, obviamente nós não cobraríamos o custo de transmissão, porque temos interesse em divulgar o futebol feminino. Se a emissora arcar com esse custo, tecnicamente poderia ser ‘de graça’ os direitos. O direito de cobrar existe, agora a necessidade de cobrar eventualmente não. Porque basta transmitir que já tá ótimo, dá visibilidade para patrocinadores dos clubes, etc. Mas as tevês têm que ter a boa vontade de transmitir”. A ida ao estádio ou acompanhar o desempenho dos times fica comprometida neste cenário.

E mesmo neste contexto o futebol feminino possui números expressivos nas arquibancadas (como por exemplo o caso do Indaiatuba que teve o recorde de 25 mil pessoas na semi-final de 2017 contra as Sereias da Vila) e dentro de campo não é diferente. Por exemplo: na lista de maiores artilheiros da seleçãoestão os seguintes jogadores: 1º lugar: Pelé com 95 gols em 115 partidas; Em 2º esta Ronaldo com seus 67 gols em 98 jogos; em 3º vem Zico com seus 66 gols em 89 jogos e em 4º vem o Romário com 55 gols em 85 jogos.

Esta é a relação entre gols por número de jogos. A linha superior demonstra o número de jogos, já a inferior, os gols. Gráfico: Infogram.

Obviamente que esta lista traz apenas os jogadores, mas se fossemos colocar o resultado das jogadoras, dois nomes apareceriam nesta lista: Marta apareceria com seus 100 gols em 102 jogos, assumindo, portanto, a liderança da lista; e Cristiane com seus 83 gols em seus 117 jogos assumindo o terceiro lugar.

Comparação entre o 1º lugar masculino com a 1ª colocada. O mesmo acontece entre o 2º lugar seguido da 2ª colocada. Gráfico: Infogram.

Ou seja, quem encabeça a lista de artilheiros é uma artilheira. Lembrando que todos os homens da lista estão aposentados, ao passo que elas estão na ativa e com vaga para a próxima disputa mundial — as Olimpíadas. Logo, esta distância se ampliará e podemos ter até uma dobradinha feminina nessa lista.

Sobre estes números, existe algo curioso sobre eles. Os dados sobre a carreira dos nossos craques é de fácil consulta e não precisa de muito tempo na web para acha-los. Já os dados das nossas craques, não. Pelo contrário, é muito confuso e em nenhum local diz com segurança quais são os números de gols e partidas defendendo a seleção. Isso indica que, no mínimo, há uma desatenção aos dados das nossas atletas, embora seja sabido que Marta superou Pelé no quesito artilharia em 27 de outubro de 2015.

E se, por exemplo abandonássemos o critério de artilharia e levássemos em consideração o prêmio Bola de Ouro — que é dado aos melhores jogadores e jogadoras do mundo — aconteceria o mesmo fenômeno. Marta é a jogadora mais premiada do mundo com 5 prêmios em primeiro lugar, 5 prêmios de segundo lugar e 2 prêmios de terceiro lugar (fundindo os números da FIFA como o Ballon d’Or), sendo que de 2006 até 2009 foram todos prêmios seguidos em 1º lugar para a atacante. E se compararmos ela com o melhor jogador ranqueado nesta premiação, que é o Ronaldo, ele está em 2º lugar no ranking geral com 3 prêmios em primeiro lugar, e 1 prêmio em segundo e 1 em terceiro lugar. São 12 prêmios da Marta para 5 prêmios do Ronaldo.

E, caso estes dados não tenham sido suficientes, abro o leque para mais modalidades esportivas: Marta é a 9ª na lista de atletas mais impactantes — eleita pela revista ESPN — em 20 anos. E nesta lista, além dela ser a única brasileira, ela esta na frente de futebolistas como Messi (11º) e Cristiano Ronaldo — (14º). Não bastando, ela se encontra melhor ranqueada do que ícones como Usain Bolt (10º — Modalidade: Atletismo), Serena Willians (12º — Modalidade: Tênis) e Tom Brady (20º Modalidade: Futebol Americano). O impacto dela para o esporte é certo e o reconhecimento é internacional. Agora, mesmo com este reconhecimento internacional, até hoje quando falam do maior artilheiro da história da seleção brasileira se referem ao Pelé, e não ela que, de fato, ostenta este título. A pergunta que fica é: o que mais ela precisa fazer para ganhar o reconhecimento pelo seu trabalho? Se nem ela com sua carreira ímpar conseguiu este reconhecimento, o que dirá da seleção feminina como um todo? o futuro é incerto…e injusto.

Se recorde de público, aplicar 8 gols — e todos feitos, nenhum sofrido — num único jogo ou termos a maior premiada da história do Bola de Ouro não ser algo que estimule quem diz que “é chato” o futebol delas, o problema não é com as profissionais, e sim com quem profere estes jargões.

Carlos Kill é paratleta, bicampeão mundial por equipe pelo Brasil no Campeonato Mundial de Surf Adaptado (2016/17). A revista é um esforço coletivo e colaborativo de levar Kill à edição de 2018, em dezembro. Acompanhe a preparação do atleta nas redes sociais.

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