É sobre pertencer

Carnavalhame
carnavalhame
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4 min readApr 4, 2022

A vida é cheia de pulsões. O desejo de “SER” no mundo é uma delas. Acho que é algo intrínseco ao ser humano. Buscamos compreender a existência, desvendar os segredos do universo que habitamos em nossa breve passagem por aqui.

Nessa busca por um sentido de algo maior, eu já fui cristã de carteirinha. Cumpri com quase todos os sacramentos da igreja católica, participei algumas vezes de um evento da Igreja Batista de um querido amigo chamado “metanóia”, termo bastante usado na psicologia junguiana que pode ser traduzido como “mudança de pensamento”, no sentido de transcendência.

Durante essa procura, passei por um período de total ceticismo, até que cheguei no candomblé. Dentro do terreiro, eu encontrei amor e acolhimento como nunca antes. Foi lá que eu descobri que os meus ancestrais foram reis e rainhas em suas nações, e que muito antes de compartirem um histórico de sofrimento pelos mais de três séculos de escravidão neste país, eles compartilhavam magia, tecnologia, segredos de sobrevivência com sentidos ancestrais, disseminados através da oralidade. Partilhavam também a alegria de se estar em comunhão, dançando e louvando as forças da Santa Natureza e suas insígnias expressas através dos orixás, voduns e inquices.

A rainha dos ventos, Maria Bethânia, canta:

“A música é a língua materna de Deus.
foi isso que nem católicos nem protestantes entenderam
que em África, os deuses dançam
e todos cometeram o mesmo erro
proibiram os tambores
na verdade, se não nos deixassem tocar os batuques
nós, os pretos, faríamos do corpo um tambor
ou mais grave ainda
percutiríamos com os pés sobre a superfície da terra
é assim, abrir-se-iam brechas no mundo inteiro”.

Agradeço aos meus ancestrais por terem insistido em tocar seus tambores, por preservarem as tradições de um culto riquíssimo de sabedoria em terras tão inóspitas, para que hoje eu pudesse vibrar de felicidade ao ouvir o som de um atabaque. Graças a esse ato de resistência e de ressignificação de dores, hoje temos esse legado e podemos sentir a força vital do axé.

Certa vez, uma amiga me perguntou: como você chegou a decisão de que deveria passar pela feitura? (processo de iniciação para orixá), e eu respondi que a gente simplesmente sabe. É um sentimento de pertencimento inexplicável, é o nosso legado preto. No candomblé, a gente desenvolve a nossa individualidade. Não de forma vaidosa, mas para que possamos manifestar as nossas potencialidades e desenvolvermos um bom Orí, morada do orixá que nos acompanha. O axé se produz em comunhão, mas cultuamos orixá através do nosso caráter principalmente. Isso se reflete na forma como agimos, como enxergamos o mundo, as pessoas e a própria vida. O objetivo é ser no mundo o melhor que pudermos!

Dentro dos nossos dogmas, não esperamos que um ser divinal venha e nos salve. Mas buscamos o nosso aprimoramento contínuo enquanto habitamos o Àiyé (terra) até o dia em que retornaremos ao Òrun (céu). Acreditamos que todas as situações e pessoas podem nos ensinar na energia de troca, pois na natureza tudo é mutável. Logo, não somos sujeitos passivos das coisas que nos acontecem, mas sim, corresponsáveis das coisas que atraímos ou repelimos com nossas escolhas, nossa conduta e caráter. Dessa forma buscamos equilíbrio em tudo para nos tornarmos cada vez mais responsáveis pela nossa felicidade e bem viver.

A força que precisamos para ter uma vida plena e feliz mora dentro de nós. Sempre acreditei numa Inteligência Maior que é criadora de tudo que é vivo e agora honro ao sagrado com a expressão da minha própria vida. “Cantar e dançar para saudar o tempo que virá, que foi, que está”, diz a letra Rito de Passá, da Mc Tha. Essa prece em forma de canto me parece o certo agora, e assim pretendo seguir os meus caminhos. Axé para quem é de axé! Amém para quem é de amém!

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