É tempo de lutar pelo direito de sonhar

Carnavalhame
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4 min readApr 29, 2022

Por Flávio Rovani de Andrade

“O sistema não teme o pobre que tem fome.
Teme o pobre que sabe pensar”.

Paulo Freire

No dia 28 de abril é celebrado o Dia Mundial da Educação. Certamente, o significado desta data é diferente em cada lugar. No Brasil, não é de hoje, em vez de comemorativo, devemos encarar como um dia de reflexão e luta.

Gostaria de convidar o estimado leitor a junto comigo refletir sobre uma questão fundamental: afinal, por que lutar ao invés de festejar? Acredito que um bom caminho seria trazermos ao diálogo dois instigantes documentários sobre a realidade educacional do Brasil: o primeiro, de 2006, é Pro dia nascer feliz, dirigido por João Jardim e disponível gratuitamente no YouTube. O segundo, de 2017, é Nunca me sonharam, dirigido por Cacau Rhoden, também disponível gratuitamente pela plataforma VideoCamp.

Com nuances e perspectivas diferentes, os filmes apontam para a mesmíssima pergunta que os jornais já faziam em 1962, uma indagação e uma realidade que persistem sem resposta efetiva há mais de 60 anos: seja num tempo em que faltava escola, seja num tempo de acesso quase universal, porém, com altos índices de abandono escolar, o direito a educação permanece precário, e a escola uma instituição com pouco sentido. Ainda há de se considerar que não temos como avaliar definitivamente os impactos dos retrocessos recentes de um governo federal de viés fascista e do descaso com a educação ao longo da crise sanitária.

Há dois anos, já no início do contexto pandêmico e antevendo o aprofundamento de nossa permanente crise educacional, Priscila Cruz, do Todos pela Educação, em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, trouxe um dado alarmante: dos alunos que concluem o ensino médio, apenas 9% têm aprendizado mínimo adequado em matemática, sendo que o abismo entre ricos e pobres é cruel, pois os 25% mais ricos têm taxas de 65% de aprendizado adequado, enquanto os 25% mais pobres têm taxa de 3%.

Dos que terminam o ciclo de alfabetização, mais de metade não aprende a ler. É alto o abandono escolar tanto no ensino fundamental quanto no médio. Mais recentemente, tivemos uma diminuição da participação dos estudantes de escolas públicas no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), que é a porta de entrada do ensino superior. Em dados já defasados, 38% dos jovens em idade de cursar o ensino médio não estão estudando nem trabalhando, e não sabemos dizer onde estão. Invisíveis!

Esses números frios ganham vida, feições, vozes e nomes nos filmes. Podemos ver o quanto a escola é, ao mesmo tempo, causa e consequência da macabra desigualdade social de nosso país, que de tão excepcional, é classificada por economistas internacionais como “jabuticabas”: nossa desigualdade é tão sem sentido que não existe comparativo em nenhum outro lugar do mundo, só tem no Brasil, igual à pequena fruta. O sistema educacional, a despeito de tantos esforços dos profissionais do magistério, reproduz e perpetua essa desigualdade.

Os documentários desmontam de forma definitiva a mentira da meritocracia. Não faltam emocionantes casos a mostrar que o Estado investe na escola como uma fábrica de exclusão, uma arma apontada para atingir prioritariamente pobres, negros, indígenas e periféricos, com grau de crueldade ainda maior contra mulheres e outros gêneros não heteronormativos.

Será que uma escola feita nesses moldes e voltada para esses objetivos dão aos jovens a oportunidade de sonhar? O jovem que pela situação de vulnerabilidade precisa trabalhar pela subsistência ou é aliciado pelo tráfico, que for falta de educação sexual tem filhos mais cedo, que por ser negro é violentado cotidianamente, que por ser mulher tem jornadas de trabalho fora e dentro de casa; ao chegar numa escola para passar horas entre quatro paredes, com profissionais que são agredidos, mal pagos, desmotivados, adoentados… Este jovem tem direito de sonhar? Qual o tamanho do seu horizonte? O quanto a vista alcança o futuro?

Sem querer dar spoiler, mas uma importante fala de um dos vídeos conclui que a desigualdade encurta a infância, trazendo consigo a mais brutal das sequelas, que é o encurtamento dos sonhos.

Nesse sentido, penso que a educação deva ser encarada como um ato de luta. Que o Dia Mundial da Educação seja uma oportunidade de refletir e lutar pelo direito de sonhar. E se essa luta parece injusta, preparemo-nos para ela. Assistir Pro dia nascer feliz e Nunca me sonharam é um ótimo começo, pois nos permite que nos enxerguemos como responsáveis pelos nossos jovens, assim como nos emocionemos com a dureza do dia a dia que é de todos nós.

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Por Flávio Rovani de Andrade

Graduado em Filosofia pelo Centro Universitário Assunção (UNIFAI, 2002). Mestre na área de Filosofia da Educação pela Faculdade de Educação da USP (2008). Doutor em Filosofia e História da Educação pela Faculdade de Educação da UNICAMP (2012). Atualmente, é Professor Associado de Filosofia Geral e da Educação na Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPAR). Autor de livros e artigos científicos nas áreas de Filosofia e Educação. Tem experiência em docência na educação básica, docência e gestão no ensino superior, atuando prioritariamente nas áreas de Filosofia e Educação. Mantém o Canal Metodologia Científica Descomplicada no YouTube, no qual ensina gratuitamente conteúdos de Metodologia Científica.

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