Entre bancários e odaliscas, a EQM do bacanal

Carnavalhame
carnavalhame
Published in
10 min readApr 24, 2022

e algumas notas teológicas

O ano era 2017, acredito. Ainda era bancário e arriscava algumas primeiras péssimas e hesitantes linhas — não que as de hoje me levem à comoção própria e não haja mais hesitação, tenho apenas a ligeira crença de, se você não é Rimbaud ou a Sabrinna Alento Mourão, os escritos de antes dos 30 devem ser mantidos sob um pacto de eterna confidencialidade; aos jovens e às jovens escritoras e escritores, favor não me levar a sério sob exercício de autoironia.

Enfim, sigamos. O ano é 2017, sou caixa de banco e, ao contrário do imaginário coletivo construído acerca do “Sonho Brasileiro” — passar num concurso público para trabalhar apenas seis horinhas –, trabalhava quase doze horas por dia, maturando tendinites e lesões por esforço repetitivo no contar de notas imundas, oriundas do sistema de exploração capitalista — eu mesmo uma minúscula, ínfima, ridícula engrenagem dos exorbitantes lucros bancários, registrado sob uma matrícula composta por sete algarismos cuja soma, noves fora, dava zero. Creiam, o mundo é feito por repetições, jocosidade e simbolismo numérico. E também gastrite. Sim, o mundo também é feito de gastrite nervosa. Creiam. Ao menos o meu é. Isso não tem nada a ver com o fato do meu café da manhã ser apenas três xícaras de café preto e dois cigarros. Creiam. Ao menos eu creio. Pois também de fé e crenças é feito o mundo.

Não apenas da vontade de mandar seu gerente à merda é construída a rotina de um bancário com algumas pretensões artísticas. Por vezes, algo vem e quebra as amarras do tédio. Naquela época ainda não foi a vez das minhas pedras nos rins — estas surgiram em meados de 2020, em meio à pandemia; não julgo ser hipocondríaco, embora a diversidade de CID’s apresentados em atestados, ao longo de 14 anos no banco, possa fazer vocês presumirem o contrário. Na ocasião, um amigo, diretor de cinema, me convidou para participar das gravações dos comerciais do espetáculo da Paixão de Cristo, no teatro de Nova Jerusalém, no município de Brejo da Madre de Deus.

Havia participado no ano anterior. Fizera uma ponta como soldado romano, ocasião na qual o lazarento do diretor me fez tirar a barba. Cidadãos romanos barbeavam-se, comentou. Maldito virginiano apegado a detalhes. Aceitei novamente, sob uma condição. Não toca na minha barba. Claro que não, tenho o papel perfeito para você.

E assim lá vou eu, em meio a artistas globais, ser figurante do bacanal de Herodes.

Uma breve digressão faz-se necessária. Boa parte do nosso imaginário acerca de algumas tradições cristãs, tidas por fatos, foram firmadas ao longo de uma extensa tradição oral de difamação das culturas tidas por pagãs e heréticas. A existência de uma grande putaria, a qual calharam batizar por bacanal, em referência aos cultos realizados a Baco, no palácio de Herodes, não tem embasamento bíblico algum. Leve em consideração, por exemplo, que a “Legenda Áurea”, escrita no século XIII, por Jacopo de Varazze, traz uma biografia de Judas Iscariotes sob um descarado plágio da história de Édipo. Não bastava ser o traidor, isso é pouco para os padrões católicos. Tinha também de ser incestuoso e, de certa maneira, um duplo parricida, se levarmos em consideração as características do dogma trinitário — instituído no Concílio de Niceia, século IV, ocasião na qual São Nicolau, o Papai Noel em pessoa, teria descido a mão num tabefe no meio da cara do “herege” Ário.

Adoro toda a estética pacifista cristã.

Então lá estava eu, em meio a uma equipe contemporânea, sob câmeras e luzes contemporâneas, ajudando a consolidar, mais uma vez, uma das maiores fake news criadas pelo catolicismo apostólico romano e suas bases fundamentadas em oralidade, fuxico, difamação e algumas fogueiras — protestantes também tiveram as suas, embora tenham preferido enforcamentos, recordem Salem, por exemplo, e o próprio Calvino que tacou gente em fogueira.

A cena era simples. Basicamente consistia em ficar sentado, tomando vinho, ao lado de uma atriz vestida de odalisca, e fingir que estava rindo igual à Paola Bracho. Tirando a parte da odalisca, nada muito fora de um dia comum.

Não sei se vocês já tiveram a oportunidade de estar em um set de filmagem. É um inferno de ordenações, altamente indicado para pessoas com sol, ou mercúrio, ou marte — preferencialmente os três — em virgem. Não é o meu caso, conste em ata. Os microfones, altamente sensíveis, exigem o mais absoluto silêncio por parte dos figurantes e equipe técnica. O arrastar de uma chinela põe toda uma cena a perder.

Vamos lá, ação!

O Jesus global passa na minha frente, levado por dois soldados, o Herodes, também global, fica lá dando umas encaradas no simulacro de messias da humanidade. Enquanto isso, estou lá sentado, encarnado na Paola Bracho afônica, rodando a taça por cima da cabeça, vou dar um virote e…

… engasgo.

(claro que isso aconteceria, o único não-ator de toda a cena, reles bancário cansado, penetra fino, ali presente só porque é peixe do diretor, engasga-se e vai por todo o trabalho daquela ruma de profissionais a perder)

Conforme verão, não sei se exatamente para minha sorte, a atriz ao meu lado era a pernambucana Karla Martins, figura carimbada e experiente nos espetáculos da Paixão. Percebendo a desgraça prestes a acontecer, esta criatura — tão dócil no alto de seus um metro e sessenta e poucos — me taca, literalmente, um mata-leão e sussurra, por entre os dentes trincados.

-Bicha (sic), segura, engole, mas não tosse!

(foi bem enfática ao dizer o “não”, até mesmo pensei em escrevê-lo em caixa alta, mas deixo vocês livres para darem a tonalidade dramática que preferirem)

Convenhamos, é uma frase MA-RA-VI-LHO-SA para ser dita num bacanal, seja ele o de Herodes ou o surubão de Fernando de Noronha, até mesmo nos seus próprios bacanais sigilosos, cara leitora e caro leitor.

Façamos aqui um pacto. Prometam-me decorar esta frase. Em verdade, em verdade vos digo: um dia, no meio de um bacanal, vos será bastante útil.

Não sei quanto tempo aquilo durou. Deve de ter sido curto, afinal é a representação de cinco versículos sem diálogos — podem conferir em Lucas 23:8–12.

Me pareceram horas, dias, séculos. Compreendi todo o conceito da relatividade do tempo naquele momento, indeciso entre morrer ou não morrer pelo bem da sétima arte, asfixiado por uma odalisca dois palmos menor que eu. Menos de um minuto bastaria para perder a consciência; se demorasse por mais de dois talvez já seria o suficiente para causar lesões graves no cérebro, por baixa oxigenação. Não sou o mais crédulo dos filhos de Deus, ainda assim clamava — mentalmente, óbvio, pois não podia fazer barulho –, meu Deus, meu Deus, não me deixa morrer assim, tenho uma filha pequena pra criar.

Já imaginava as manchetes dos jornais mais sensacionalistas. Bancário é morto estrangulado por odalisca em meio a um bacanal. Eu só queria ver a Aline Riscado e fumar um cigarro com o Fiuk — ele era o discípulo João. E agora estava ali morrendo entalado de vinho e sufocado por uma odalisca. Sei que soa praticamente como uma cena cortada do Calígula, de Tinto Brass, mas era real, eu estava morrendo, ainda assim a cena ficaria perfeita nas peças publicitárias.

Só pensava em minha filha. O que dirão a ela?

Não sei com qual idade é considerado recomendável o tratamento psicanalítico — comecei depois dos trinta –, mas digamos que minha filha o fizesse a partir dos vinte e poucos. A terapeuta pergunta, e seu pai, fale um pouco sobre ele.

-Era bancário e morreu estrangulado por uma odalisca em meio a um bacanal.

(a terapeuta, em sua melhor cara de jogadora de pôquer em pleno blefe, simplesmente anota na caderneta: “mas que porra é isso? What a lapa de caso”)

Morte inglória, inglória! Toda minha descendência exposta ao escárnio do mundo!

Sim, sei que você também está pensando sobre o simbolismo disso tudo. Encarnávamos naquele momento, Karla Martins e eu, todo um histórico de personagens bíblicos — embora não tenha o infeliz do bacanal de Herodes lá — mortos por mulheres a partir da cabeça.

Jael fincara uma estaca no crânio de Sísera a ponto dela cravar-se no chão; Dalila fez Sansão dormir em seu colo antes de cortar-lhe as tranças — o cafuné mais dramático de todas as narrativas das religiões abraamicas –; Salomé trazendo a cabeça de João Batista numa bandeja de prata; Judite arrancando a cabeça de Holofernes com as próprias mãos — história solenemente ignorada por protestantes, ainda que Martinho Lutero tenha mantido os livros deuterocanônicos em anexo, por relevância histórica.

E sim, querida leitora e querido leitor, poderíamos divagar por horas sobre como essas narrativas serviram de substrato retórico acerca da construção da imagem da mulher como uma antítese à “racionalidade” dos homens — São Tomás de Aquino fala bastante sobre isso na Suma Teológica — atingidos em suas frágeis cabecinhas.

E não, eu não era um patriarca conduzindo o povo escolhido à terra prometida, nem um mártir apedrejado sob os olhos do futuro converso Paulo de Tarso. Na maioria das vezes, somos apenas o servo de Pilatos carregando a tirrina d’água para ele lavar as mãos. Anônimos e atônitos diante da história a delinear-se diante nós entre os messias — os verdadeiros e os falsos — e os donos do poder secular. Ou somos apenas um bêbado morto por odaliscas.

Bom, o tema central disso tudo, nesta prosa estendida por mais que o incialmente pretendido, é que venho ao mundo hoje, cinco ou seis anos depois — a bem da verdade, não recordo se era 2016 ou 2017 — revelar minha experiência de quase morte (EQM) ocorrida naquela madrugada. Morri e tornei, garanto. Meu cargo de Comendador não me permite ao trato das mentiras, nem mesmo as ficcionais.

Àquela época, a atriz a me enforcar pelo bem da sétima arte — era apenas uma peça publicitária, criatura, não um filme — era companheira de um ator pernambucano que, por duas edições do espetáculo-, encarnou o Cristo. Isso mudou porque apenas atores globais, ou indicados pela Record de Edir Macedo, podem encarnar o Cristo. Pernambucanos, não.

E não é que morri e fui recebido pelo próprio Jesus, diante do pretório divino marcial, e ele era realmente a cara escrita do José Barbosa? A situação me deixou meio sem graça, então iniciei assim o diálogo.

-Olha… Não é bem o que parece.

-Sem ressentimentos.

-Veio pessoalmente me buscar. Posso passar para o lado de lá?

-Então, meu amigo, veja bem… Você acabou de morrer entalado com vinho, estrangulado por uma mulher seminua fantasiada de odalisca, enquanto encenavam um bacanal que sequer consta na minha biografia autorizada. Entendo, você foi bancário, penou um bocado, mas há algumas regras sobre esse “passar para o lado de lá”, espero contar sinceramente com sua compreensão.

-Claro, claro. Foi bastante convincente.

-Sem ressentimentos?

-Sem ressentimentos.

À minha esquerda estava um precipício, pois a estética cristã tem esse pantim pavoroso de manter pretensas salvações à direita — e assim queimaram canhotos na Inquisição e o Brasil está na merda há quatro anos.

-Certo, então é só saltar? Alguém me pega, tem elevador?

-Ô Miguel, sacode uma almofada primeiro. O coitado era caixa de banco.

-Grato por sua clemência.

-Sem ressentimentos?

-Sem ressentimentos.

-Deus te acompanhe

-Meio paradoxal, não?

-Homem, avie logo que a fila está parada.

-Sem ressentimentos?

-Pule logo, seu enfitéto.

E pulei, não havia mais escolhas. Enquanto caía pensava o quão sem graça é o inferno bíblico e me apegava aos círculos de Dante. Repassava meus pecados e tentava adivinhar em qual dos círculos passaria minha danação eterna. Com certeza, o quinto círculo, destinado aos irancudos. Disso é feito um bancário, de ira, de ódio. Odiava sujar as mãos em dinheiro alheio; odiava pagar pensões insuficientes para velhinhos com trinta por cento da renda comprometida por empréstimos consignados retirados pelas crias ingratas; odiava todos os bancos em suas metas abusivas — quem diabos quer um título de capitalização –; odiava boa parte dos meus colegas de trabalho, principalmente os gerentes em suas síndromes de Estocolmo doentias, tratando por próprias as algemas de um sistema que os impedia de ter qualquer conversa inteligente para fora da realidade do trabalho numa mesa de bar; odiava a lei dos quinze minutos; odiava as doze horas de trabalho me afastando da minha filha, a quem só via pelas manhãs para deixar nas creches e depois já dormindo, após o expediente; odiava a sensibilidade dos microfones, me impedindo ao menos de morrer decentemente aos gemidos de, digam a minha filha que a amo. E me preparava para pousar entre outras criaturas forjadas em ódio — atendentes de telemarketing, coroinhas, motoristas de ônibus — para trocar murros e bicudos por toda a eternidade. Já ensaiava minha melhor pose de artista marcial em filme cafona dos anos 80, em suas narrativas também odiosas sobre algum ocidental que treina alguma arte milenar por quinze dias e sai para derrotar asiáticos em torneios também odiosos — porque o Ocidente, em sua eterna narrativa castrada e sem graça e ligeiramente histérica, precisa dessas ficções para deslegitimar culturas alheias e assim dormir em paz com seu ego saciado por ficções autonarradas. E caía já gritando, berrava para quebrar os umbrais e assim todos os seres viventes pudessem me ouvir: tragam-me os gerentes. Espero vocês no inferno, desgraçados!

Nada disso aconteceu. A odalisca me solta. Sequer tenho dignidade para tossir. Não importava quantos minutos tenha sido. Vi a eternidade diante de mim e ouço o diretor avisar.

-Passou um carro em algum lugar, vazou som e teremos que filmar novamente.

Maldito virginiano apegado a detalhes.

Se você gostou, siga nossas redes, compartilhe nosso conteúdo :)

Facebook || Instagram

--

--