Mano Brown: o contemporâneo

Carnavalhame
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4 min readApr 19, 2022

27 de fevereiro de 2018, Mano Brown concede entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil. Pedro Paulo Soares Pereira, então com 47 anos, tratava a memória como preciosa matéria prima para a sua constante renovação sensível para com a periferia.

Do alto de uma laje no Capão Redondo, a céu aberto, o rapper paulista registra o caráter mutante da relação entre a cultura, a identidade e o rap na sua vida. A esta altura, aproximando-se dos 50, Pedro Paulo parece bem mais leve se comparado a imagética construída nos anos 90; preto e branco saturados, imobilidade, dureza. E se aquela música pudesse adquirir forma, talvez caminhasse como uma sombra implacável atravessando as vielas e quebradas de São Paulo.

Beirando os 50 anos, Pedro Paulo parecia sorver o céu aberto do Capão naquela tarde ensolarada, sua camiseta branca e oakley juliet pareciam combinar secretamente com as fitinhas de plástico que brandavam ao fundo. Existe uma leveza que o tempo lhe deu, ou, diria, a experiência do tempo.

Os anos 90 nos soa inescapável quando as duras batidas de Pânico na Zona Sul dão solidez e sobriedade aos samples de James Brown. Cortam as asas do anjo negro do funk e o trazem à realidade de um Brasil de Collor de Mello e José Sarney, hiperinflação e crescente violência urbana. O rap produzido no Brasil — aqueles primeiros Lp’s, singles e cassetes que ferviam nas periferias — eram música de despertar. Um despertar violento, mas profundamente coletivo.

É lugar comum, na estruturação do hip hop brasileiro dos anos 90, um movimento rumo à conexão entre as coletividades; seja no campo artístico, da produção dos discos e shows, seja na congregação dos espaços urbanos marginalizados. A união de todas as quebradas é uma utopia necessária no cenário de total negação do direito a vida, à expressão cultural e à liberdade que cercava, progressivamente, a periferia. O rap é (diz Sabotage) um compromisso inescapável, dever coletivo, convocação para a guerra — e isso tudo pesou demasiado nos ombros de Mano Brown.

Outubro de 2002, mês eleitoral do pleito para presidente no Brasil. A capa do disco mostra bela composição através do verde metalizado de um Cadillac(?), céu limpo, calça cargo bege e champanhe aberto. O nome do álbum: Nada como um dia após Outro Dia. Passagem do tempo, abertura das energias vitais, sonho, delírio, prazer.

As utopias têm a capacidade de encantar a realidade, inventar novos sentidos àquilo que poderíamos imaginar como imóvel. As utopias, diferentemente das teogonias, requerem muita energia para serem vividas, são uma constante projeção ao desconhecido, àquilo que reside no futuro enquanto desejo. Mano Brown e os Racionais MC’s, através de sua relação com tempo, perceberam que existe potência e desafio no sonhar.

As faixas inicial e final do disco nos apresentam uma jornada marcada por músicas de Cassiano, um ídolo maior de Mano Brown. Através da Radio Êxodos somos convidados a um passeio pelo álbum, e pelo zapear pelas ondas de rádio, somos marcados pela multiplicidade de sensações que marcam a vida cotidiana: humor, inveja, paixão, medo, excitação, saudade, camaradagem. É um disco do dia e da noite, que nos dá a sensação da passagem do tempo, de deslocamento e mudança. Em Sobrevivendo no Inferno, o livro, não o disco, nos é mostrado que a estruturação litúrgica do álbum homônimo de 1998, dá ritmo implacável que nos faz, sinestesicamente, tocar a aspereza dos anos de recessão econômica, desigualdade social e desesperança daquela década.

Em 2002 estes problemas não estão superados, contudo, as estratégias de guerra dentro da cultura Hip Hop se renovaram e com isso vieram novas contradições. Na primeira década do século XXI, o indivíduo, nas letras e na construção da imagem do rap brasileiro começava a emergir. Talvez símbolo inicial, meteórico, teria sido Sabotage (1973–2003). Sua curta presença no cenário nacional nos deixa imaginar o que poderia fazer Mauro Mateus, em curto espaço de tempo fora de ator a sambista, figura pública na TV que transitava nos meios diversos da desigual indústria da cultura no Brasil. Algo se rompeu em relação à década anterior e algo potencial começava a emergir.

Estamos falando aqui de uma entrevista de 2018. Ano bastante distante destes processos anteriormente colocados. Mas Mano Brown, como sujeito histórico está conectado a tudo isso. E ele, como figura pública cada vez mais presente, é uma esfinge que guarda o segredo do tempo — tempo histórico que é construído por processos que criam contradições.

Durante a entrevista, o rapper paulista prevê as nuvens tenebrosas que se aproximavam nas eleições de 2018 (o povão “com medo” é uma criança) e dá a letra de sua percepção da relação entre as instâncias políticas e as populações das periferias. O povo deseja, consome, tem voz e possui suas contradições. Brown nos instiga a pergunta: o que quer o povo preto?

Talvez não saiba ele e nós, menos ainda. Mas sua figura é cada vez mais comum em plataformas como Spotify (Mano a Mano, o seu podcast de entrevistas, é simplesmente o podcast número 1 da plataforma sueca no Brasil) e Youtube . Suas aparições públicas já não são envoltas de mistérios e sombras. Existe uma claridade na sua presença, uma leveza em meio a batalha em que vivemos. A mais recente das entrevistas, no mega popular podcast PodPah, por exemplo, foi a entrevista mais vista da história do podcast, superando até mesmo o ex-presidente Lula. Diferença e repetição: Mano Brown continua preparado para a guerra, contudo, prepara novas estratégias de ação. Poucos sujeitos da arte podem ser considerados contemporâneos durante tanto tempo, eis aqui um deles.

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