TESES EXPERIMENTAIS SOBRE O RISO DE DEUS

Carnavalhame
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5 min readApr 6, 2022

Dedicado à Professora Juliele Sievers

“Deus? Uma superfície de gelo
ancorada no riso. Isso era Deus”

Hilda Hilst

Estados Unidos da América, 1961

Quarenta homens serviram de voluntários para participar de um experimento. Consistia, em tese, numa experiência sobre aprendizado. Por 4,50 dólares, estes homens entraram numa sala e tinham diante de si um gerador com trinta chaves — prefiro chamar por botões. Noutra sala em paralelo, estava a cobaia, um homem desconhecido pelos outros quarenta, visto através de um vidro.

Um por vez, a função dos quarenta homens, pagos em 4,50 dólares, era fazer perguntas à cobaia e, a cada erro, giravam uma das chaves do gerador — prefiro dizer apertavam os botões –, dando um choque na cobaia. Os choques iniciavam em 15 volts, subindo gradativamente até os 450, já considerada uma descarga com risco de morte. Não apenas viam a cobaia, também a ouviam.

A cobaia inicia em seus erros, os homens iniciam os choques. À medida em que os choques aumentavam, a cobaia gritava coisas do tipo, pare, estou sofrendo, isso dói, sou cardíaco, você vai me matar.

A reação da maioria dos homens, pagos em seus 4,50 dólares, era rir. Riam enquanto a cobaia saltava e implorava, sou cardíaco, vou morrer.

O riso alastra-se e é sempre contagioso, este também seguiu para além do experimento, porque esses homens — não sei como se chamam homens estadunidenses que apenas apertam os botões para muito além dos filmes da sessão da tarde, talvez John, talvez Jack — voltaram para suas casas, nas quais suas esposas — não sei como se chamam as boas esposas estadunidenses dos homens estadunidenses que apenas apertam os botões, talvez Maggy, talvez Rose — os aguardavam para o jantar junto aos filhos — não sei como se chamam as crias estadunidenses dos homens estadunidenses que apenas apertam os botões, talvez Alice, talvez Johnny Albert III.

E é à mesa, diante de alguma ave morta e assada por seis horas na temperatura de 180 graus, que a pequena, talvez, Alice pergunta, como foi seu dia, papai?

-Sabe, filha, papai participou de uma experiência importante. Minha função era apertar botões que eletrocutavam um homem cada vez que ele errava uma pergunta.

E então o pequeno, talvez, Johnny Albert III pergunta o que ele fazia, papai?

-Ora, meu pequeno, talvez, Johnny Albert III, ele se contorcia todo e implorava para que parasse, mas pelo bem da ciência, seu pai seguiu até o final. Era engraçado, não era? Ele pedia todo o tempo que parasse, era muito engraçado, não era?

-Sim, papai, engraçado.

-Rá, rá, rá

-Rá, rá, rá

-Rá, rá, rá

-Rá, rá, rá

(não sei se risadas estadunidenses escrevem-se por rá, rá, rá)

Dias depois, descobrem. Era tudo uma farsa. O eletrocutado era apenas um ator. Nunca houve choques, os pedidos de clemência eram falsos; eram falsos os eletrodos; eram falsos os botões. O experimento não era sobre o aprendizado da cobaia. Era sobre os homens que apenas apertavam os botões.

Dos 40, 21 foram até a descarga final de 450 volts. 19 seguiram até 300. Nenhuma desistência até os 300. De real, apenas os risos.

Obviamente houve revolta. Claro, os homens revoltaram-se. Afinal, fizeram rir suas esposas, também fizeram rir suas crias. O pequeno, talvez, Johnny Albert III, até espirrou suco de cramberry por toda a mesa — porque é certo, podem estar certas e certos, não existe suco de tamarindo nos Estados Unidos da América, mas existe suco de cramberry, e se existir, eu cegue.

E riram eles mesmo, desde quando apenas apertavam os botões. Riram às lágrimas. Gargalharam convulsos às mesas de jantar, enquanto espalhavam perdigotos sobre os pedaços do bicho morto degolado três dias antes das seis horas num fogão a 180 graus. Gargalharam aqueles homens que jamais ofenderiam uma mosca — se é que há moscas em suas casas estadunidenses, de tão assépticas que devem ser as casas estadunidenses dos homens estadunidenses que riem enquanto apenas apertam os botões.

República Federativa do Brasil, 1996

Sob a sombra do pé de jambo, uma criança observa formigas.

Ainda não sabe, são todas irmãs, filhas de uma mesma mãe, divididas num complexo sistema organizacional de trabalho, então acredita que cada uma delas possui casa, família e assistem aos noticiários todas as noites após um logo dia de trabalho exaustivo.

Diverte-se em soprá-las. Acompanha o desespero inicial, a confusão das patas minúsculas jogadas longe pelo sopro da própria boca e como sempre se reorganizam novamente em filas — Deus e formigas, curiosamente, sempre se reorganizam. Sabe que falarão mais tarde nos noticiários da noite sobre as pancadas de vento repentinas, trazidas pela frente fria. Especialistas recordarão o reforço sobre o uso de equipamentos de proteção individual, enquanto algumas dirão às crias, estive lá, estes equipamentos não ajudam em nada.

É pouco soprá-las, sabe que é muito pouco.

Vai à cozinha e traz o inseticida. O toque da névoa branca é instantâneo. Talvez nem tenham tempo para sentir dor, tornam-se estáticas tão logo cobertas pela névoa.

Costuma ir à igreja aos domingos e conhece certas verdades. É nas grandes ceifas que se alimentam os títulos divinos; é de imensos holocaustos que se engorda o temor ao Senhor.

Por segundos esquece o próprio nome. Por segundos sabe, na realidade, tem por nome Deus. Eu me chamo Deus por dois ou três segundos.

Durante o jantar, pensa em contar à mãe e ao pai as descobertas daquele dia. Sabe bem, não deve pegar o inseticida. Prefere apenas rir.

Enquanto isso, um novo cortejo de formigas se organiza para carregar seus mortos. Cantam incelenças. Inaudíveis lamentos sobre o retorno ao ventre da Grande Saúva Vermelha, a Soberana Mãe Tanajura que um dia pariu o mundo enquanto anunciava a chegada das chuvas.

Alguns anos depois, na última das sociedades civilizadas

Diz-se, entre as grandes mentes da sociedade das abelhas, que foi de observar, do alto das folhas do pé de jambo, o cortejo das formigas carregando os corpos de suas pares, logo após o fatídico Massacre da Grande Névoa Branca, o surgimento da oração tradicional realizada ao alvorecer de todas as colônias, uma vez que as abelhas, por sua peculiar anatomia, são incapazes de carregar seus próprios defuntos, abandonando-os às formigas.

É considerado perjuro rir durante a execução da reza, e também nos três segundos posteriores.

Conta-se ter sido cantada, pela primeira vez, pela grande profeta, do Clã das Aripuás, Salazarias Tangará, fundadora do Grande Cânone após testemunhar o Massacre da Grande Névoa Branca.

cada formiga carrega um morto

e vivem tão poucos dias

ainda assim, têm o dever

de carregar ao menos

um morto por dia

pelo lado de cá

toda criatura de duas asas

abandonará um morto um dia

talvez não todo dia

ainda assim

abandonarão um morto um dia

dia não

dia sim

somos das criaturas de duas asas

que abandonarão ao menos um morto um dia

dia não

dia sim

formigas me carregam

para longe daqui

Qualquer lugar do mundo, 2022

Insones atentos percebem os risos de uma divindade ausente.

Na maior parte do tempo, assemelha-se a uma criança.

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