A ficção histórica nos games

Imersão, ilusionismo e a busca frenética pelo realismo

Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva
3 min readOct 4, 2016

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Battlefield 1 (2016) é ambientado na Primeira Guerra Mundial.

É provável que a nossa geração tenha um conhecimento diferente das batalhas da Segunda Guerra em relação as gerações pré-Call Of Duty. Um livro de história não recria o passado: faz um século caber num parágrafo da mesma forma que uma vida mais ou menos exemplar passa a existir em três ou quatro linhas da Wikipédia. A vida da pessoa não está ali, nem pode estar, da mesma forma que não é o passado que encontramos nos manuais de história, mas um texto sobre o passado. A história do universo pode caber num documentário de duas horas e meia. A campanha da Segunda Guerra em seis horas de jogo.

Batalha de Stalingrado, recriada pelo no game Call of Duty 2 (2005)

Esses gráficos de Call of Duty, numa cena que recria a Batalha de Stanlingrado, parecem hoje fakes. Mas a experiência de quem jogou esse jogo dez anos atrás permanece forte. Qualquer pessoa que tenha jogado participou de uma representação mais ou menos próxima do que era ser um soldado russo: correr em direção a uma fileira de metralhadoras, bombas caindo por todos os lados, corpos caindo. E você armado apenas com um pente de balas — esperando o soldado à sua frente morrer, pois a proporção era de um fuzil para cada três homens da tropa russa. Imagino o seguinte: qual será a representação do passado criada por essa geração que agora está imersa em Assassin’s Creed, que percorre vários períodos da história?

Durante muito tempo os games buscaram imitar o cinema ou a televisão (algo que ainda acontece com os games de futebol, por exemplo, que simulam uma transmissão de TV). Mas há muitos games que já se libertaram dessa dependência de ser uma espécie de filme interativo: o jogo de mundo aberto é algo que só existe no universo narrativo dos games e não pode ser transposto nem para um filme e tampouco para um livro.

Os games, assim como o cinema, tem uma vantagem (ou especificidade) em relação ao texto narrativo que se propõe a se ocupar do passado como elemento de fabulação: as narrativas audiovisuais não precisam se perder numa descrição exaustiva para causar a impressão de realismo. Um romance histórico que tente ingenuamente competir com essas mídias — ou seja — busque reconstruir o passado numa pesquisa exaustiva, saturada, está condenado ao fracasso. Em certa medida, ter isso em mente liberta a narrativa literária que se ocupa do passado: há coisas que só um texto pode fazer. Essas narrativas digitais podem libertar a ficção histórica assim como a fotografia libertou a pintura.

Mas pode ser um experimento interessante tentar descrever exaustivamente uma cena semelhante a desse vídeo, com todos os detalhes e nuances de luz e movimentos e troca de foco narrativo. Fico imaginando qual seria o resultado de tal exercício na pena de um escritor como Cormac McCarthy.

A indústria dos games trabalha com orçamentos maiores que o cinema americano. Os consoles são onipresentes nas residências e os consumidores estão cada vez mais exigentes. Essa disputa quantitativa nos polos mais poderosos da indústria do entretenimento acabou por gerar uma guerra qualitativa entre as produtoras: mesmo na chave mais comercial há games que podem ser considerados verdadeiras obras de arte, como é o caso de The Last of Us ou Red Dead Redemption.

Há que se pensar como é a recepção de uma ficção histórica encarnada no avatar do texto literário, em um contexto onde o leitor está saturado não apenas de imagens do passado, mas de experiências realistas do passado. Não tenho respostas. Mas a pergunta, por si só, me parece de grande valor.

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Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva

Escritor, jornalista, redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP. Autor de Pesadelo Tropical (Aboio, 2023). www.marcosviniciusalmeida.com