Briga de galo

a escrita do passado e a ilusão de presença

Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva
4 min readSep 19, 2016

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Pixabay

“Há alguns anos atrás, o antropólogo Clifford Geertz inventou a expressão ‘descrição densa’ para uma técnica que interpreta uma cultura alienígena, através da descrição precisa e concreta de práticas ou acontecimentos particulares, em seu caso, a descrição das brigas de galo em Bali”.

Nesse trecho do seu livro, Peter Burke está falando da escrita da História, com H, da disciplina científica. A ideia é que o historiador — e também o ficcionista, eu diria — deve ter em conta que o passado é uma espécie de cultura alienígena. E deve tentar descrevê-lo, e também narrá-lo, tendo em vista essa disposição de auscultar o estranho — e construir a familiarização da única forma possível: olhando pra ele.

A imagem de um antropólogo europeu com óculos e terno bem alinhado, tentando descrever exaustivamente uma briga de galo — me remeteu aquela imagem do conto Catedral, em que um homem fracassa ao tentar descrever para um cego — que nunca viu uma catedral — o que seria uma catedral. Há tantos elementos num frame de uma catedral que descrever o que se vê é um labirinto que vai nos mostrando esse espaço apertado que é o espaço da fala, e também da escrita, ao tentar captar uma imagem.

A descrição, no texto literário, é um recurso perigoso: basta pensar naquelas descrições estáticas dos romances naturalistas. Em certa medida, o conto de Carver pode ser lido nessa chave de paródia a narrativa que tenta reproduzir no texto o mundo como pura exterioridade. Reduzir o texto literário a uma única dimensão — uma sucessão de quadros estáticos — é o caminho mais rápido para o fracasso. Até nas pinturas mais abstratas os traços e linhas se deslocam. A boa descrição é vívida: incorpora alguma espécie de movimento na imagem.

Isso tudo é muito abstrato. Gosto de pensar por exemplo naquelas passagens de Meridiano de Sangue, ou Memórias do Cárcere. Tudo se move nessa descrição:

“Arrisquei alguns passos, maquinalmente, parei meio sufocado por um cheiro acre, forte, desagradável, começando a perceber em redor um indeciso fervilhar. Antes que isso se precisasse, confuso burburinho anunciou a multidão que ali se achava. Agora já não éramos pequeno rebanho a escorregar num declive: constituíamos boiada numerosa; à ideia do banheiro carrapaticida sucedeu a de um vasto curral. Certamente a perturbação visual durou um instante, mas ali de pé, sobraçando a valise, a abanar-me com o chapéu de palha, tentando reduzir o calor, afastar o cheiro horrível, mistura de suor e amoníaco, um pensamento me assaltou, fez-me perder a noção do tempo.”

Embora toda escrita esteja se enunciado a partir de um presente, de um agora da escrita, toda escrita é escrita de um passado (real ou imaginário), mesmo se o tempo verbal vier no presente. O tempo verbal no presente é uma ilusão retórica, da mesma forma que um tempo verbal no futuro.

O cinema, por sua vez, é uma grande caixa de ilusões, uma dupla ilusão. Além da ilusão de presença, o que é um filme senão a sucessão de frames estáticos?

Se me ponho diante de uma folha em branco e tento descrever esse estar diante da folha em branco, ou tento descrever esse escrever, na medida mesmo que escrevo aquele presente já desapareceu e só vai existir aqui defasado. Um exemplo concreto: há sempre uma distância entre a voz da narração de um jogo de futebol e as imagens na tela. O narrar do narrador diante das imagens é sempre uma espécie de comentário descritivo e ligeiramente afastado no tempo em relação a um lance que já não é mais.

Escrever é sempre escrever o passado. Muitas vezes para o passado. Mesmo quando se imagina um futuro possível. Mesmo aqueles que escrevem com o coração voltado para posteridade são logo arrastados pelo redemoinho do tempo e ricocheteados rumo ao passado.

E o tempo não é de forma alguma uma entidade abstrata: deslocar-se no espaço é também deslocar-se no tempo. Isso pode ser sentido concretamente numa cidade como São Paulo, por exemplo. No centro expandido, você está em 2016. Mas se você for se deslocando para os extremos da cidade, a sensação concreta é que está recuando alguns anos e décadas, onde os prédios vão dando lugar as construções mais rústicas e no fim das contas encontramos apenas casas no meio da floresta, sem esgoto ou qualquer daquelas estruturas de metal envidraçado, com pessoas vivendo como se vivia no início do século passado.

Presente e passado são como esse manto de estrelas que iluminam o céu à noite. Cintilam diante dos olhos mas sua presença é fruto de uma defasagem temporal: milhões de anos-luz percorrendo a imensidão do vazio para chegar até nós. E nesse agora, lá mesmo no seu lugar, toda essa luz já desapareceu engolida pela escuridão total. E também esse sol fulminante que nos cega e castiga, é ele mesmo um sol recuado oito minutos no passado. Estar distante no espaço é também estar recuado no tempo.

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Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva

Escritor, jornalista, redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP. Autor de Pesadelo Tropical (Aboio, 2023). www.marcosviniciusalmeida.com