Escrita, distância e desvio

Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva
4 min readJun 21, 2017

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A noção de distância é uma categoria fundamental para o conceito de crítica, mas também para o conceito de história de Walter Benjamin. É justamente pela noção de distância que Benjamin ataca o princípio fundamental do historicismo: a ingênua noção de empatia. Os teóricos do historicismo e do positivismo, sob o desejo de fazer da história uma ciência da natureza, acreditavam que seria possível estabelecer uma relação de empatia total com o passado, quase fundindo-se com ele. Nesse sentido, a empatia não pode transformar nada, apenas reviver, celebrar e reverenciar as coisas tais e quais. A empatia impossibilita o estranhamento, que é reconhecer o outro como outro: esse encontro com a alteridade radical, encontro sempre traumático, que provoca uma ferida profunda no nosso ego.

Benjamin diz que a relação de empatia sempre será uma relação de empatia com o vencedor. Somente pela distância se opera o pensamento e a prática crítica, do passado, mas também do presente. Essa distância não-empática é condição necessária a uma postura justa com o outro. Uma distância justa que interrompe essa falsa causalidade da história linear, amparada na ideia de progresso. É essa abertura da história que permite ao historiador materialista contar a história dos sem nome, dos vencidos, das vozes soterradas pelas catástrofes dos séculos.

A crítica de Platão à escrita, no diálogo Fedro, também pode ser pensada como uma espécie de separação, de distanciamento. Platão inventa um mito sobre o surgimento da escrita, recorrendo a mitologia egípcia. Sócrates, personagem do diálogo, diz que a escrita não diz nada que não saibamos: só lembra aquilo que já sabemos. Um texto é marcado pela mudez: nunca pode responder se for interrogado, caso haja dúvidas de interpretação. A escrita é uma espécie de gravação rígida, que ecoa o mesmo do mesmo desde sempre. Por isso, na visão de Platão, a verdadeira memória e o diálogo vivo, onde o movimento do pensamento nunca se cristaliza, nunca interrompe seu fluxo, seria infinitamente superior à escrita, onde autor e mensagem estão desde sempre separados, distantes um do outro.

Fala-se sempre de mergulhar num livro, num poema, ou em um processo de escrita, mas escrevemos e lemos justamente para nos afastar, tomar distância das coisas. É nesse sentido que Michel de Certeau vê a escrita da história como um rito de sepultamento, que separa o passado do presente: separa o mundo dos vivos, o nosso, do mundo dos mortos, aqueles que viveram antes de nós.

A escrita de ficção sempre será uma espécie de afastamento do real. E não apenas como uma espécie de fuga da vida — o que não é necessariamente negativo — mas como gesto crítico diante do real. A distância ficcional guarda em si essa potência crítica — de si mesma e do mundo — uma potência que faz da ficção, da ilusão, dos jogos de imaginação e do sonho, um perigo para o pensamento fixo e engessado. Em relação ao real, a ficção é quase nada. Um nada sempre aberto a outras vidas, a outras possibilidades de ser e de viver. Eis o grande risco da ficção.

A escrita e a leitura nunca são apenas esclarecimento, clareza, iluminação. Os primeiros registros escritos surgiram em práticas religiosas, entre iniciados de seitas secretas, com guardiões de oráculos e videntes, pergaminhos apócrifos e livros cifrados. Uma escrita cujo objetivo era esconder segredos. Um gesto de ocultação.

Os jovens apaixonados, perdidos e sem rumo, tomados pela vertigem, com seus cadernos secretos, seus poemas e mensagens cifradas, repetem essa mesma prática milenar dos velhos sábios, bruxas, alquimistas. Algo bem menos ingênuo que o sacerdote católico diante do livro sagrado: totalmente seguro na fé, ao achar que encontrou o sentido verdadeiro da vida, na letra morta das Escrituras.

A imaginação é subversiva. Principalmente numa época como a nossa, onde o valor de cada coisa é medido pelo potencial de consumo, pelo estrito resultado prático. Nesse contexto, a boa imaginação é aquela que pode render produtos de consumo: o ingresso do mundo dos sonhos da Disney, da Pixar, a imaginação projetada em 3D numa tela de cinema de shopping. A criança sozinha, imaginando e sem fazer nada, está entendiada. É necessário ocupá-la. Não à-toa o grande paradigma de criatividade da nossa época é o publicitário: esse sujeito que vende os sonhos que queremos comprar.

É preciso tomar distância disso tudo. E se a literatura pode ter ainda alguma função é justamente de nos arrastar para longe. À margem dessa praticidade e imediaticidade, do tempo que nos acelera e nos sufoca, de pensar outro mundo, outros modos de vida. Literatura é desvio, sair dos trilhos, não seguir o roteiro. Pura abertura. Um pensar que se move sempre para fora.

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Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva

Escritor, jornalista, redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP. Autor de Pesadelo Tropical (Aboio, 2023). www.marcosviniciusalmeida.com