Esfolamento

Tradição e transmissão da barbárie

Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva
3 min readDec 6, 2017

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De Humani Corporis Fabrica, Andreas Vesalius em 1543.

Em todas as versões da narrativa de Januário Garcia, seja na ficção ou na historiografia, o que há de comum é que a vingança tem como ponto de partida um esfolamento: do filho de Januário, no caso da ficção de Joaquim Norberto; do irmão, amarrado a uma figueira, na versão corrente na memória oral. O esfolamento é uma prática antiga, encontrada em várias culturas e épocas, inclusive na antiguidade clássica.

Apollo and Marsyas, de Bartolomeo Manfredi — 1615–20.

Marsias — Mitologia Grega

Na mitologia, há a lenda da disputa musical entre o sátiro Marsias e o deus Apolo. Há muitas versões para esse mito, em algumas delas Atena joga fora o aulo, uma espécie de flauta de duas cabeças, e Marsias a captura e torna-se um exímio músico. O domínio do instrumento é tamanho que ele chega a desafiar o deus Apolo (razão e equilíbrio). O vencedor da disputa poderia castigar o perdedor da forma que bem quisesse. Marsias se apresenta primeiro, uma apresentação virtuosa, quase perfeita. Tão perfeita que deixa Apolo profundamente irritado. O deus então saca a lira, instrumento até então desconhecido dos homens, e vence a disputa. Como castigo, Apolo esfola Marsias vivo e prega a pele do sátiro numa árvore. O sangue que escorreu formou o rio Marsias. Um rio de sangue.

Curioso pensar que Apolo, a razão fulminante, esfolava vivo uma figura mitológica ligada a Dionísio: uma figura híbrida, ou seja, exagerada, que não respeita os limites.

A esfola de Mársias, de Ticiano — 1570–1575

A falta de respeito aos limites é uma constante também das várias versões da lenda de Januário Garcia. No caso da ficção de Joaquim Norberto, Antônio, o filho de Januário, é tomado por uma paixão e se envolve com uma mulher prometida. No caso da memória oral, há uma disputa pelas divisas de terras.

Enquanto gritava, arrancava-se-lhe a pele de todos os membros; seu corpo não era nada mais que uma chaga. O sangue jorrava de todos os lados; seus músculos, expostos nus, estão visíveis; veem-se suas veias onde o sangue bate, e nenhuma pele o recobre, estremecendo, se poderiam contar as palpitações de suas vísceras, e, no seu peito, as fibras, entre as quais passa a luz.

Ovídio (Metamorfoses, VI, 387–92)

Bartolomeu — Mártir

Apóstolo Bartolomeu esfolado vivo e decapitado, Arménia, 70 dC.

Bartolomeu, que também aparece nos evangelhos como Natanael, foi um dos doze apóstolos de Jesus. Ele morreu em 51 dC, após conseguir converter o rei Polímio, na Armênia. Bartolomeu provocou a ira dos sacerdotes pagãos e foi esfolado vivo.

Curioso que, enquanto Natanael, há uma passagem que se refere a uma figueira: “ Perguntou Natanael: ‘De onde me conheces?’ Jesus respondeu: ‘Eu o vi quando você ainda estava debaixo da figueira, antes de Filipe o chamar’.João 1:48

São Bartolomeu sem a pele, Marco d’Agrate — 1652, Catedral de Milão
São Bartolomeu em detalhe do Juizo Final de Michelangelo, altar da Capela Sistina

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Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva

Escritor, jornalista, redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP. Autor de Pesadelo Tropical (Aboio, 2023). www.marcosviniciusalmeida.com