Happy ending

Final feliz é coisa de novela das oito?

Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva
3 min readFeb 22, 2018

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Há esse livrinho do Tchekhov, que reúne trechos de cartas, chamado Sem trama e sem final. Embora seja mais reconhecido como contista, suas reflexões alcançam a narrativa ficcional como um todo. Para o escritor russo, a trama tem pouco valor: o que vale é o detalhe significante, a descrição precisa e a ação que se desenrola de forma livre e fluída. Um conjunto de princípios articulados que criam no leitor — não a impressão de que tais coisas se passam assim na vida, não é um problema de equivalência— , mas que o próprio texto é ele mesmo um acontecimento.

Os finais abertos de Tchekhov, sem narradores explicativos e sem enredos amarrados, seriam o equivalente das curvas abruptadas e incontroláveis da vida: porque nós sabemos, tudo na vida acontece sem trama e sem final. Passamos a maior parte do tempo com aquela cara de cachorro manco atropelado tentando entender de onde surgiu aquele caminhão que nos amassou o rabo.

Talvez venha daí o consenso de que final feliz é coisa de livro ruim. E que literatura séria, literatura literária, tem de ser necessariamente árida, sisuda, sem esperanças: desvelar o absurdo sem contorno da vida, onde nada faz muito sentido e tudo acontece para além do nosso controle.

A baixa literatura seria então uma espécie de escapismo. Um confortante universo de faz de conta onde os amores são possíveis, o sacrifício e esforço valem a pena, os justos prosperam e os maus recebem aquilo que merecem. Na baixa literatura, o autor seria uma espécie de Deus cristão, justo, ético, que distribui para seus filhos ficcionais a cartilha das máximas do Sermão da Montanha. Não deixa de ser verdade.

Mas tem esse poema da Wisława Szymborska, ganhadora do Nobel em 1996, que não fala necessariamente de escapismo, ou de conforto, mas de consolação. O poema começa com uma anedota apócrifa de Darwin:

Dizem que ele para relaxar lia romances.
Mas tinha uma exigência:
não podiam acabar mal.
Se achasse um assim,
atirava-o ao fogo com fúria.

A explicação dada por Wisława Szymborska é que depois de ver tanta injustiça no mundo, Darwin não gostava de encontrar a mesma coisa nos livros. De ruim e dura, já basta a vida.

Percorrendo com a mente tantos espaços e tempos
saturou-se de ver tantas espécies extintas,
tantos triunfos dos mais fortes sobre os mais fracos,
tamanhas tentativas de sobrevivência,
mais cedo ou mais tarde inúteis

Isso coloca a questão do final feliz em outro patamar. Talvez seja verdade que o leitor procure, mesmo que de forma inconsciente, algum tipo de fantasia reconfortante na ficção dita barata. Mas o que efetivamente todo leitor procura é algo diferente daquilo que vive na experiência concreta. O que atrai o leitor não é a identificação, mas justamente a possibilidade de viver coisas que são impossíveis na realidade imediata. Sabendo que a felicidade é impossível na vida, o leitor procura vivenciá-la nos livros. Algo que está mesmo próximo daquela ideia mais ou menos consensual: a arte existe porque a vida não basta.

Final feliz é na verdade uma espécie de vingança sanguinária, sem piedade, contra a vida. Um verdadeiro massacre.

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Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva

Escritor, jornalista, redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP. Autor de Pesadelo Tropical (Aboio, 2023). www.marcosviniciusalmeida.com