O leitor comum

Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva
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3 min readMay 21, 2016
Pixabay

Pesquisa sobre hábitos de leitura revela que brasileiro não conhece o Brasil

Quando a câmara votou o afastamento de Dilma, fosse qual fosse a trincheira do espectro político, o sentimento comum que prevaleceu entre os brasileiros foi o espanto: nem tanto pelo ridículo da performance dos deputados em si mesma, mas porque é inevitável não reconhecer que o legislativo é uma espécie de espelho daquilo que somos. O Brasil não conhece o Brasil.

Algo semelhante acontece quando são divulgadas pesquisas sobre a relação do brasileiro com atividades culturais e artísticas, principalmente em relação à leitura. Há sempre discursos exaltando o descomprometimento do brasileiro com a arte geral. O brasileiro não conhece o Brasil.

Numa edição anterior, li um texto carrancudo e acusatório, um defensor do livro dizia que os brasileiros deveriam deixar de comprar cerveja, roupas de marca, celulares de mil reais, abandonar o hábito de assistir novela e o Faustão para se dedicarem a leitura de Guerra e Paz, Proust e Machado de Assis.

O curioso no texto, no entanto, era que o autor era ele mesmo um jovem escritor. Havia portanto um desejo velado: a intenção era fazer com que os brasileiros desligassem a TV, o videogame, faltassem ao churrasco e ao show do Wesley Safadão pra ler seus livros. Que há em todo artista uma pretensão nem sempre explícita, isso é óbvio, mas no caso do autor do texto tal pretensão esbarra no desespero: descrença total no seu próprio trabalho.

Nas redes sociais, a principal crítica dos brasileiros ao leitor comum foi que a referência aos livros de Machado de Assis empatou com Kéfera Buchmann, uma vlogueira, hipercelebridade entre jovens e adolescentes, que arrastou multidões na última Bienal do Livro. Seu livro, Muito Mais que Cinco Minutos, é uma espécie de aditivo do seu canal do Youtube.

A jovem de 23 anos tem cerca de seis milhões de seguidores no Facebook (somando Instagram, Twitter, Youtube o número chega a 13 milhões). Para se ter uma ideia, celebridades como Wesley Safadão tem cinco milhões, mesmo número que o jornal Folha de S. Paulo, enquanto a presidente Dilma tem pouco mais de três milhões.

O que não se questiona nessa pesquisa é algo que não pode ser medido pela metologia científica, mas que nós sabemos muito bem como funciona: na verdade, muitas das pessoas que citaram Machado de Assis quiseram parecer inteligentes. Talvez tenham se lembrando da professora do ensino médio usando a expressão “maior escritor brasileiro de todos os tempos”, enquanto os leitores que citaram Kéfera Buchmann realmente a leram.

No ano passado, um centro cultural aqui de São Paulo realizou um evento literário, onde a principal convidada foi uma grande pesquisadora de semiótica e Literatura. Ao ser peguntada sobre os caminhos da poesia contemporânea, ela respondeu o seguinte: “Não conheço, o que leio de poesia contemporânea hoje leio na internet. Um poema ou outro”.

Se o próprio leitor qualificado e especialista não lê a produção contemporânea daquilo que se chama “literatura literária”, por que o espanto em relação ao leitor comum?

Que a literatura ocupa hoje uma região periférica na própria cultura parece um consenso. Mas é preciso reconhecer que a produção e recepção têm se configurado de outra forma . Se por um lado os cadernos de cultura desapareceram, por outro lado, os blogs, revistas independentes, coletivos e pequenas editoras se alastram pelo país.

Mas há um erro de percepção. O periférico não é uma situação decadente, mas uma condição de liberdade. Por isso é desolador ver que, ao invés de fazer dessa liberdade frente ao mercado um potência criativa, a maioria das pequenas editoras e autores independentes buscam reproduzir um modelo esgotado de produção e circulação de literatura. Ou seja, as editoras alternativas se veem como velhas e grandes editoras em potencial, num estágio de infância, e não como um novo modelo de circulação e produção.

Buscam desesperadamente o reconhecimento de um mercado de pseudo celebridades eruditas em vias de desaparecer. Quando na verdade sua maior força está justamente em poder criar e circular sem ter em vista interesses do velho mercado, que quase sempre passam ao largo da literatura.

Acho que o caminho é por aí.

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Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva

Escritor, jornalista, redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP. Autor de Pesadelo Tropical (Aboio, 2023). www.marcosviniciusalmeida.com