O matador

E o Sete Orelhas

Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva
3 min readNov 25, 2017

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O matador, primeira produção brasileira da Netflix

Alguns de vocês sabem que estou trabalhando desde o ano passado (um pouco antes, até) num romance livremente inspirado em Januário Garcia, vulgo Sete Orelhas, um justiceiro que talvez tenha vivido na antiga Comarca do Rio das Mortes, Minas Gerais, entre 1761–1808.

Esse romance faz parte da minha dissertação de mestrado.

Januário é uma figura nebulosa, que transita entre história, memória oral e ficção.

Não sabia de nada disso, quando ouvi essa história pela primeira vez, por volta dos sete ou oito anos, talvez antes, da boca de um contador de causos. Um causo que até hoje é recontando no Sul de Minas, como se tivesse mesmo se passado naquelas serras.

Na historiografia, descobri nesses últimos anos, o primeiro registro apareceu no livro The History of Brazil, de Jonh Armitage, publicado em Londres, em 1836: numa nota de rodapé (uma nota que misteriosamente desapareceu, na tradução para o português, no ano seguinte). Armitage ouviu da boca dos paulistas a lenda de um justiceiro que arrancava as orelhas de suas vítimas, como os antigos Bandeirantes.

Na memória oral, muito forte até hoje na pequena cidade de São Bento Abade, no Sul Minas, Januário é um vingador. Seu irmão teve a pele arrancada ainda vivo, por sete homens. Januário os caça por anos, os mata e corta fora as orelhas, que depois viram um colar. A lenda é tão forte nessa cidade que há uma estátua em homenagem ao justiceiro. E o provável local da morte do irmão é um ponto turístico.

Documentos disponíveis no Arquivo Ultramarino contam outra coisa. Januário era líder de uma gangue de mercenários, a gangue dos Garcia, que tocava o terror na Comarca do Rio das Mortes, desafiando juízes, forças oficiais, invadindo prisões e libertando presos, mas também promovendo massacres de inocentes. Pelo menos quinze assassinatos registrados em processo.

A despeito da historiografia, Januário Garcia é um dos primeiros personagens de ficção da Literatura Brasileira. Apareceu pela primeira vez em folhetim (alguns registros falam em 1832, outros em 1843), na pena do rato de arquivo Joaquim Norberto, membro do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico Brasileiro.

Numa segunda versão, trocou de nome: passou a se chamar Matheus, em 1944. Depois, quando finalmente virou livro, na coletânea Romances e Novelas (1852), recuperou o nome Januário. Na ficção de Norberto, ao invés de vingar a morte do irmão, o justiceiro vinga a morte do filho.

Januário virou peça de teatro, crônica, poema em alemão, memória. Nos cadernos do espólio de José de Alencar — informa Lira Neto na biografia O inimigo do Rei — há várias sinopses de livros não escritos, rascunhos, lista de títulos. Entre os títulos de livros não escritos é possível ler: “Sete-orelhas”.

Além da estátua na pequena São Bento Abade, Januário virou filme para TV nos 80, cordel, crônica, documentário, capítulo de estudos rigorosos sobre o banditismo e o crime na Minas Colonial.

Pra minha surpresa, dia desses, ele apareceu no filme O matador (2017), primeira produção brasileira da Netflix. Virou cangaceiro. Saiu do velho Brasil Colônia e passou a usar chapéu de Lampião, no começo do século XX. Comendo lagartos e alimentando um bebê com sangue de onça.

O filme é irregular, como muita gente já escreveu por aí. A única coisa que salva é a breve aparição de Januário. Aquele mesmo Januário, da história, da lenda, da ficção que, além de matador, é uma figura difícil de morrer: tanto na história, na vida, na memória, como na ficção.

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Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva

Escritor, jornalista, redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP. Autor de Pesadelo Tropical (Aboio, 2023). www.marcosviniciusalmeida.com