O passado está na moda

O retorno dos games de guerra aos conflitos históricos

Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva
4 min readMay 4, 2017

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Paisagem esgotada

Ninguém aquenta mais esses games com soldados escalando paredes, armas coloridas modernosas, lasers e cenários pós-apocalípticos e catastróficos. O mantra tem sido repetido principalmente pelos fãs, mas também por jogadores esporádicos desses games de tiro em primeira pessoa.

O principal alvo de ataque é a série Call of Duty, uma das mais rentáveis e premiadas de todos os tempos. Embora todo mundo continuasse comprando o game a cada novo lançamento, ninguém aquentava mais batalhas futuristas, esses soldados trajando exoesqueletos numa paisagem cheia de drones.

Se no final da década passada o game alcançou um patamar superior, ao abandonar o clássico cenário da II Guerra Mundial e ambientar seus jogos nas Guerras Modernas — trazendo para o centro dos conflitos os desertos do oriente médio, cidades europeias e americanas, e até uma favela carioca — desde o lançamento de Ghosts (2013), a sensação geral era de que a coisa havia degringolado. Nos games seguintes, Black Ops 3 e Advanced Warfare, apesar dos gráficos espetaculares, era tudo muito falso.

Arrisco o seguinte diagnóstico: há, claro, por um lado, a nostalgia dos jogadores mais antigos, que jogaram as primeiras versões do game, mas há principalmente uma mudança de sensibilidade dos jogadores mais jovens. Essa nova geração de jogadores, que acessa à realidade irrestritamente mediada pelas telas de celulares e tablets, tornou-se imune a essas paisagens futuristas e saturadas. Ao que parece, esse mar de imagens tem soterrado nossa sensibilidade, ao mesmo tempo que despertaram uma espécie de desejo de realidade.

Desejo de real

Ano passado, quando Battlefield, concorrente direto de Call of Duty, desembarcou na I Primeira Guerra Mundial, o furor foi instantâneo. A Electronic Arts despejou um orçamento milionário na construção de cenários ultrarealistas, capazes de explorar todo o potencial da nova geração de consoles, PS4 e Xbox one, trazendo para o game as batalhas nos desertos africanos, o horror da guerra de trincheira, a agonia de combates de baionetas. Ao invés de drones e naves robóticas, o jogador tem a sua disposição cavalos e arcaicos aviões de hélice.

Os gráficos ultrarealistas, ponto de vista narrativo na primeira pessoa, mais o lastro histórico — isso aconteceu de verdade — aliado a esse combate corpo a corpo, criam no jogador a impressão de proximidade com o real. Isso me parece um sintoma da época, um sintoma que ultrapassa o espaço dos games.

Battlefield 1. Divulgação.

Antes que o MMA se tornasse uma indústria de entretenimento de jovens em busca de uma experiência real, nem que fosse a mais pura brutalidade transvestida de esporte, Chuck Palahniuk, no seu Clube da Luta, já havia anunciado o diagnóstico. Uma geração de consumidores, educados pela televisão, presos a um emprego que odeiam, enfrentando jornadas exaustivas, que para além da pura sobrevivência, tem a única função de saciar necessidades e sonhos impingidos pela publicidade.

Esse sujeitos se reúnem então em um clube de boxe clandestino no porão de um bar do subúrbio: homens comuns, garçons, executivos, frentistas, professores, em busca de algum tipo de experiência verdadeira, algum tipo de choque que pudesse despertar seus corpos entorpecidos dessa completa inanição sensorial.

Na literatura, a autoficção, certo tipo de prosa convencional crua, que prega o abandono dos artifícios procedimentais da ficção clássica (construção de personagens, montagens de cenas e diálogos, estruturação de enredo), numa busca obsessiva pelo real, a experiência verdadeira, é também um sintoma dessa inanição da sensibilidade, a busca da salvação numa estética do choque. O reality show é o equivalente popularesco da autoficção.

Que esses games oferecem novos problemas para se pensar a figuração do passado, a questão da ficção histórica em geral, é algo mais ou menos óbvio. E esses novos problemas, creio, ainda não foram pensados em todo o seu potencial. Já falei disso antes.

Mas tem outra questão, que se coloca agora: pelas resenhas que saíram por aí, os produtores de Call Of Duty pretendem “mostrar todo o horror da guerra”, inclusive questões como o racismo, xenofobia e a misogina. É claro que há games que são verdadeiras obras de artes, seja por problematizarem a sua própria linguagem e estrutura, ou apenas por explorar de modo impecável todas as suas possibilidade narrativas, como é o caso de Red Dead Redemption, Skyrim e Last of Us. Mas também é difícil para um produto como Call Of Duty, no posto mais alto da indústria cultural, escapar da força centrífuga do eixo da pura fetichização da violência.

Não sei mesmo as respostas. São questões que eu gosto de pensar.

Mas uma coisa é certa: numa época em que a guerra é uma experiência quotidiana, em lugares como Síria e Iraque, e que as tensões geopolíticas se agravam entre EUA e Coreia do Norte, esses games podem nos lembrar que em uma guerra, definitivamente, não há vencedores. E que História, nós sabemos, não tem a ver com progresso: é um acúmulo de ruína, violência e catástrofe.

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Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva

Escritor, jornalista, redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP. Autor de Pesadelo Tropical (Aboio, 2023). www.marcosviniciusalmeida.com