O silêncio das mãos

Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva
Published in
2 min readApr 28, 2018
Véio (fonte: Destaque Comunicação)

O menino sergipano Cícero Alves dos Santos não gosta muito de brincar. Está sempre afastado das outras crianças, mas não é por culpa do tablet, como acontece hoje. Essa história real começa nos 50. Num longínquo e inimaginável mundo offline perdido, com cartas de papel e finais de Copa de Mundo acompanhadas num radinho de pilha.

Na pequena Nossa Senhora da Glória, interior do Sergipe, o menino Cícero tem outro interesse: sentar-se ao lado dos velhos, esticar as orelhas, e ouvir seus causos.

As outras crianças, claro, não toleram esse fascínio do menino Cícero pelo universo dos antepassados. Não admitem esse interesse irresponsável do amigo por histórias de gente que já morreu, de gente inventada, gente que nunca existiu.

Para se vingar do amigo, passam a chamá-lo de Véio.

Véio tinha tudo para se tornar também ele um narrador de causos. Um transmissor de narrativas tão antigas como o próprio mundo, passadas desde sempre de boca em boca, “como um anel”. Ele conhece muitas delas.

Véio costuma dizer em entrevistas que não gosta de imitação pura, como fazem os papagaios. Arte pra ele é criação.

Na obra de Véio, essas antigas narrativas e personagens fantásticos escapam do universo da palavra falada e ganham cor. Forma. Textura. O clima desse mundo imaginário se materializa na metamorfose de troncos e galhos de madeira morta. Figuras que são elas mesmas portadoras de histórias, “como se fossem gente”, ele diz.

O menino Cícero, hoje o grande escultor Véio, continua transmitindo as histórias que escuta. O impacto desse universo imaginário da oralidade reverberou tão forte no menino Cícero que a única forma que encontrou pra expressar esse misterioso contágio foi abandonar o barulho da própria voz: e se entregar ao silêncio das mãos.

Pois se antes escutava os velhos narradores, agora (sozinho no seu ateliê, uma fazenda povoada por essas figuras), Véio escuta o que ela, a silenciosa madeira, quer contar.

--

--

Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva

Escritor, jornalista, redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP. Autor de Pesadelo Tropical (Aboio, 2023). www.marcosviniciusalmeida.com