Os fantasmas de Proust

Vestígios do tempo entrecruzado

Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva
4 min readOct 27, 2017

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1.

Em seu ensaio sobre Proust, Benjamin diz que devemos ler no escritor francês menos uma reflexão sobre a fugacidade do tempo e sua procura, e mais o entrecruzamento da memória involuntária, onde um átimo da experiência tende a dilatação infinita, enquanto o envelhecimento do corpo, no qual estamos necessariamente enterrados, fornece a sensação que tudo que poderíamos viver chega sempre “tarde demais”.

“O procedimento de Proust não é a reflexão, mas a presentificação”, diz Benjamin. “Pois ele se encontra permeado pela verdade de que não temos tempo de viver os verdadeiros dramas da existência que nos é destinada. É isso que faz envelhecer, e nada mais. As rugas e dobras do rosto são as inscrições deixadas pelas grandes paixões, pelos vícios, pelos conhecimentos que nos falaram — enquanto nós, os proprietários, não estávamos em casa.” [1]

As rugas, nessa luminosa imagem construída por Benjamin, não são a marca da experiência que de fato vivemos, o acúmulo de experiência ou conhecimento, mas justamente a inscrição sorrateira dos verdadeiros dramas que nos são destinados, mas que não pudemos viver. Quanto mais se vive, quanto mais tempo de vida se têm, mais fundo a vida a qual estamos destinados imprime suas marcas no nosso rosto, abrindo fissuras e relevos cada vez mais espessos. É a vida que nos escapa. E tal descoberta sempre chega tarde demais.

2.

É famosa a relação estabelecida por Benjamin entre a asma que padecia Proust e a elasticidade da sintaxe, da frase proustiana. Ninguém melhor que Benjamin, a quem Adorno constantemente acusava de ser “pouco dialético”, poderia transformar um índice biográfico num elemento interno de modo tão violento e, ao mesmo tempo, sutil. A respiração ofegante, pronta a cair no fosso da asfixia, dilata-se nessa constante abreviação e interdição do ponto final.

3.

Tarde demais. O conhecimento sobre a verdadeira vida a qual estamos destinados chega sempre tarde mais. Jeanne-Marie [2], ao comentar a questão da força da morte na obra de Proust, estabelece uma relação íntima entre a passagem das “crenças célticas”, que vem um pouco antes do episódio da madeleine do primeiro volume, com a morte de Bergotte, em A prisioneira. Bergotte é um escritor melancólico e elegante, que o narrador de Proust adora ler na adolescência.

Begotte está gravemente doente, não pode sair da casa. Mas ao ler a crítica de um quadro do pintor Vermeer Van Delf, que Begotte reverencia, ele se sente tentando a ir ao museu. Begotte é seduzido pela descrição que o crítico traz: um pedacinho de muro amarelo, tão maravilhosamente pintado, que valia, sozinho, por toda obra de Vermeer.

Ao chegar ao museu, Begotte passa na frente de vários quadros, mas esses quadros exalam apenas uma espécie de secura “de uma arte tão fictícia”. É o contrário daquilo que encontra, ao alcançar o quadro com o muro amarelo: uma arte que reverbera uma verdadeira preciosidade, ao mesmo tempo transparente e espeça, com várias camadas de cor.

“Assim é que eu deveria ter escrito, dizia consigo. Meus últimos livros são demasiados secos, teria sido preciso passar várias camadas de tinta, tornar a minha frase preciosa em si mesma, como este panozinho de muro.”

Então ele se sente mal, caí do sofá, e morre.

4.

Morremos sempre balbuciando, diz Michelet. A morte, antes de ser algo como um corte que daria o contorno de uma vida, é justamente o não-saber, a impossibilidade de saber o que é a própria vida, a passagem da vida ao não-saber. Como nos lembra Rancière, em passagem inspirada: “ O inconsciente e a morte são duas noções equivalentes, substituíveis uma pela outra. Estar morto é não saber, é estar à espera do saber libertador sobre si mesmo. Acalmar o tumulto de vozes é acalmar a morte, apaziguar a multidão dos que estão mortos por não saber e não saber o que significa viver.” [3]

5.

“Acho muito razoável a crença céltica de que as almas daqueles a quem perdemos se acham cativas nalgum ser inferior, num animal, num vegetal, uma coisa inanimada, efetivamente perdidas para nós até o dia, que para muitos nunca chega, em que nos sucede passar por perto da árvore, entrar na posse do objeto que lhe serve de prisão. Então elas palpitam, nos chamam e, logo que as reconhecemos, está quebrado o encanto. Liberadas por nós, venceram a morte e voltam a viver conosco.

É assim com nosso passado, trabalho perdido procurar evocá-lo, todos os esforços da nossa inteligência permanecem inúteis. Ele está oculto, fora do seu domínio e do seu alcance, nalgum objeto material (na sensação que nos daria este objeto material) que nós nem suspeitamos. Esse objeto, só do acaso depende que o encontremos antes de morrer, ou que não o encontremos nunca.” [4]

6.

É pelo acaso, essa lógica secreta e subterrânea, que as coisas podem ganhar e recuperar seu contorno, como também podem se perder para sempre.

“Segundo Deleuze, via Proust, este acaso é, paradoxalmente, a única fonte de nossos conhecimentos necessários e verdadeiros: necessário não no sentido clássico de uma coerência por nós estabelecida, mas no sentido que não podemos escapar deles. Acaso, portanto, muito mais próximo das noções de atenção e kairos (e de toda tradição, da mística à psicanálise, que esses conceitos orientam) do que da ideia de uma consciência exterior. O risco maior consiste, segundo Proust, na nossa propensão a passar ao lado dessa ‘vida verdadeira’, que jazia escondida no signo causal e ocasional, por inatenção, por preguiça, por covardia (…) e, aí sim, o perigo de sermos surpreendidos pelo acaso maior, a morte, antes de termos sequer suspeitado dessa outra vida, dessas outras vidas”. [2]

[1] BENJAMIN, Walter. A imagem de Proust In: Obras escolhidas I — Magia e técnica, arte e política. 2012, p. 47.

[2] GAGNEBIN, Jeanne-Marie. O rumor das distâncias atravessadas In: Lembrar, escrever, esquecer. 2006. p.145–161.

[3] RANCIÈRE, Jacques. O lugar da palavra In: Os nomes da história. 2014. p.93–95.

[4] PROUST, Marcel. No Caminho de Swann, 2006, p. 70

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Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva

Escritor, jornalista, redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP. Autor de Pesadelo Tropical (Aboio, 2023). www.marcosviniciusalmeida.com