Os primórdios da prosa de ficção brasileira

Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva
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4 min readFeb 4, 2016

Antes que Teixeira e Sousa publicasse O filho do pescador (1843), o escritor Joaquim Norberto (1820–1891) já havia publicado dois trabalhos ficcionais, um deles sobre Januário Garcia

Detalhe da capa, publicada na coletânea Romances e Novelas (1852), de Joaquim Norberto. Fonte: www.brasiliana.usp.br

Se a produção literária nacional, ainda hoje, sonha com uma maior autonomia cultural e a consolidação de um sistema literário robusto — desejo de ter uma Literatura vigorosa como a russa, alemã ou francesa, tipo exportação — imagine o drama de poetas e prosadores que viveram em um Brasil pré-sistema literário e cultural, bem antes que um José de Alencar ou Machado de Assis tivessem colocado a mão na pena.

Nesses tempos de grande esforço e ambição, mas pouco talento, conforme diz Cândido em seu estudo Formação da literatura brasileira, não havia círculos e grupos, mas “manifestações literárias” e um desejo messiânico de ter uma literatura, desejo lastreado na necessidade urgente de fundar um país.

“O desenvolvimento do romance brasileiro, de Macedo a Jorge Amado, mostra quanto a nossa literatura tem sido consciente de sua aplicação social e responsabilidade na construção de uma cultura” ¹, afirma Cândido.

Mas esse espírito de missão, “um senso de dever literário”, conforme diz o crítico, “não bastam, de vez que o próprio alcance social de uma obra é decidido pela sua densidade artística”. Hmm. “densidade artística” é um termo no mínimo vago. Mas deixemos isso de lado por enquanto.

Ensaios

Embora as primeiras tentativas exploratórias carecessem de fôlego e domínio técnico, o aparecimento da ficção em prosa no início do séc. XIX se materializou em pequenas narrativas, com extensão de contos ou noveletas, mas que eram batizadas pelos próprios autores — por pretensão, ignorância ou pela própria indefinição do gênero — como “romances”.

Joaquim Norberto (1820–1891), consciente dessas primeiras aventuras, escreveu na introdução de seu Romances e Novelas(1852): “É o romance entre nós de tão moderna data que se não deve esperar por ora senão débeis ensaios”. Mais adiante no tempo, Joaquim Manoel de Macedo escreveria no prefácio de A Moreninha: “Eis aí vão umas páginas escritas, às quais me atrevi a dar o nome de Romance”.

Nesse contexto de parca produção nacional, as traduções desempenharam uma função fundamental, tanto na formação do público como de escritores: as narrativas estrangeiras, desde fins do século XVIII, traduzidas ou no idioma original, circulavam pelo país, com destaque para o papel da prosa francesa.

Segundo Cândido, não se tratava apenas de prosa refinada: “pertenciam, na maior parte, ao que hoje se considera literatura de carregação; mas eram novidades prezadas, muitas vezes, tanto quanto as obras de valor. Assim, ao lado de George Sand, Mérimée, Chateaubriand, Balzac, Goethe, Irving, Dumas, Vigny se alinhavam Paul de Kock, Eugène Sue, Scribe, Soulié, Berthet, Gonzalés, Rabou, Chevalier, David, etc. Na maioria franceses, revelando nos títulos o gênero que se convencionou chamar folhetinesco. Quem sabe quais e quantos desses subprodutos influíram na formação do nosso romance? Às vezes, mais do que os livros de peso em que se fixa a atenção”².

Não é de hoje, portanto, que escritores e leitores são formados pela leitura de obras de qualidade duvidosa, que devassam as estantes de livrarias, embora a industrial cultural e o capitalismo tardio de nossos tempos tenha atingido níveis insustentáveis: empurrado o produto nacional para o fundo da estante. Isso, quando vai parar na estande da livraria. Quando chega na editora.

(um parêntese: entrei na Saraiva Santa Cruz há alguns anos pra matar o tempo antes de uma sessão de cinema. Rodei as estantes em busca de literatura nacional contemporânea, e foi difícil encontrar. Dois exemplares de Perdição, do Luiz Vilela, recém-lançado à época, escondidos no fundinho da loja. Até o mainstream da literatura brasileira contemporânea é marginal).

Outro fator determinante no aparecimento da nossa prosa foi a consolidação do jornal como instrumento de propagação dos folhetins que iam parar nas mãos de uma proto-burguesia, um primeiro público leitor. E foi nesse clima de tentativas e erros que bacharéis letrados fundaram nossa prosa.

Era noite; — e em casa de Januário Garcia tudo estava mudo e melancólico; ali, na rica sala apainelada e trastejada à antiga portuguesa, tudo respirava silêncio como em velho templo esbroado e decaído… Apenas escassa e trêmula luz do candeeiro, que bruxuleava já à míngua de óleo, palidejava nas empoeiradas paredes… Apenas lá, de quando em quando, suspiro doído ou lânguido gemido, quebrava o silêncio da tristeza, em que tudo parecia repousar…

(Joaquim Norberto)

Segundo a cronologia do projeto Caminhos do Romance, o primeiro trabalho de ficção publicado no Brasil foi Niterói — Metamorfose do Rio de Janeiro (1822), de Januário da Cunha Barbosa, seguido pela novela Statira, e Zoroastes (1826), de Lucas José de Alvarenga e pelo romance Januário Garcia ou As Sete Orelhas (1832) de Joaquim Norberto.

O filho do pescador só vai aparecer uma década depois: 1843. A moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, apenas em 1844. E se formos pensar em José de Alencar, O Guarani só veio à público em 1857.

Mas de acordo com a pesquisadora Sílvia Maria Azevedo, Januário Garcia ou As Sete Orelhas, foi originalmente publicado com o título de Mateus Garcia, em 1844. As informações de Silvia Maria Azevedo divergem do projeto Caminhos do Romance. Minha intuição diz que a professora Silvia Maria Azevedo, que é especialista no autor, esteja com a informação correta. Afinal, se Norberto nasceu em 20 e publicou o livro em 32, ele teria, na ocasião 12 anos de idade.

A ficção construída por Norberto, no que tange ao enredo, foge da narrativa oral que eu ouvia quando criança, como também de alguns estudos históricos que tive acesso. De toda forma, é no mínimo curioso ver a narrativa de Januário, que também é personagem do romance que estou escrevendo, figurar entre as primeiras incursões em prosa em nossa terra. Faz da pesquisa sobre essa personagem algo ainda mais interessante.

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Referência

¹CÂNDIDO, Aparecimento da Ficção. IN: Formação da Literatura Brasileira V.2.

²Idem.

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Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva

Escritor, jornalista, redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP. Autor de Pesadelo Tropical (Aboio, 2023). www.marcosviniciusalmeida.com