Primeira versão

Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva
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5 min readOct 6, 2017

Escrita criativa, processo criativo

Mapa da Comarca do Rio das Mortes

Se o segredo do conto está em lançar o leitor na lona, num só golpe, enquanto o romance vai ganhando a luta pelo acúmulo de pontos provocados por pequenos jabs que nem sempre entram direito, e uma defesa bem posta, como propôs Cortázar, do ponto de vista de quem escreve, talvez a questão seja posta a partir da 1) velocidade, 2) intensidade e 3) acúmulo. Quando mais rápido se escreve e quanto mais tempo se convive com a prosa, mais a própria prosa ganha força, e meio que se liberta, seja pelo volume de páginas que vão ficando para trás, seja pelo horizonte que vai se abrindo na sua frente. O volume de páginas atrás meio que empurra a prosa para frente.

2.

Eu tinha um longo plano traçado quando comecei a escrever, um plano bem definido, mas foi começar a escrever as coisas mudaram de rumo e tomaram um caminho que nunca iria imaginar. Não que a pesquisa e o plano inicial não tenham valido de nada. Na verdade, sem essa pesquisa e esse plano inicial eu jamais teria alcançando o desvio.

3.

Há muitos manuais de Escrita Criativa no mercado. A maioria deles segue aquilo que podemos de chamar de modelo americano: frases curtas, poucos adjetivos, escreva sobre o que você conhece, preste atenção nos diálogos, evite clichês. Se você não leu nenhum desses até hoje, eu recomendo três: Oficina de Escritores, de Stephen Koch, Sobre a escrita, do Stephen King e Para ler como um escritor, da Francine Prose.

Os dois primeiros, além de serem uma ótima introdução para quem tem uma vontade meio confusa de escrever ficção e deseja começar de algum ponto, servem também como uma espécie de auto-ajuda para escritores em geral: sempre leio algum trecho do Stephen Koch quando estou meio desaminado. As citações que ele escolhe são ótimas e podem também ser um ponto de partida para você encontrar outros autores interessantes. Defendo esses manuais porque são uma espécie de atalho: vão te poupar anos de trabalho duro patinando sozinho em problemas simplórios, tentando descobrir tudo sozinho quando na verdade já teve gente encontrando algumas boas soluções antes de você. Melhor aproveitá-las e depois descobrir seus próprios problemas e soluções. Porque eles sempre virão.

4.

A velocidade da escrita dá confiança. Aquela sensação de que a coisa está fluindo. Fiquei meses atolado num capítulo, numa cena que não conseguia resolver. E quanto mais atolado mais inseguro eu ficava. “Nunca vou conseguir terminar isso”. Mas foi resolver esse episódio problemático, e pronto, a escrita voltou a fluir e correr como se eu já soubesse de antemão a palavra que viria antes mesmo de digitar.

Os trechos que escrevi rápido ficaram melhores desenvolvidos do que aqueles em fiquei patinando por semanas. “A eloquência, segundo Cícero, reside em um movimento interrupto da mente”, diz Stephen Koch, justamente num trecho do livro que argumenta sobre a importância da velocidade da primeira versão.

5.

Claro que depois você vai voltar e mexer e principalmente cortar e riscar. Porque afinal de contas escrever é cortar e reescrever. Essa primeira versão mais bruta não é nada além de areia e cascalho. O trabalho de fazer a massa vem depois.

6.

Há outra passagem do Stephen Koch que não me canso se citar. E sempre me ajuda:

“Muitos escritores afinam o ouvido para a prosa começando o dia com uma leitura estimulante, um pouco de prosa perfeita. ‘Leio alguma coisa’, diz Maya Angelou, ‘talvez Salmos, talvez algo do Sr. Dubar, de James Weldon Johnson. E me lembro de quão bela, quão maleável é a língua, de como ela é prestativa. Você a manipula e ela diz ‘Tudo bem’. Lembro-me disso quando começo a escrever”. Mary Gordon tem um elaborado ritual: “Antes de levar a caneta ao papel, leio. Não consigo começar meu dia lendo ficção; preciso do tom mais íntimo das cartas e dos diários. Desses diários e dessas cartas — material de primeira mão — copio algo que tenha estimulado minha fantasia… Mudo para Proust; três páginas em inglês, e as mesmas três páginas em francês… Depois passo para ficção que estou lendo seriamente, aquela que estou usando como diapasão, aquela de que preciso para encontrar o tom que vou adotar na ficção que estiver escrevendo no momento… Copio parágrafos cujo peso e cadência possam me ensinar alguma coisa. Há dias, quando estou com sorte, em que o próprio movimento da minha mão, como uma espécie de dança, começa outro movimento que me permite esquecer a presunção, a insensatez daquilo que sou”. Paul Johnson, um dos mais fecundos ensaístas ingleses, recorre a certos mestres para atender a certas necessidades. “Todo escritor tem seus estimuladores em prosa. Os meu são a Bíblia do rei James, Bacon, Milton e Hobbes. Alguma coisa de Swift e Hazlitt, um pouco de Gibbon, as cartas de Byron, sempre. Leio Jane Austen por causa de suas ironias sutis, tão maravilhosamente sob controle, e também por sua capacidade de fazer a história avançar com rapidez sem nunca perder o fôlego.”

7.

Na internet há textos ótimos. Eu indico três que acho essenciais: a) Gary Provost, sobre o tamanho das frases e a música que brota do ritmo; b) Aquele clássico do Chuck Palahniuk; c) e esse texto genial da Luisa Geisler, sobre literatura e truques de mágica.

8.

Agora, para quem deseja entender um pouco melhor a relação da Escrita Criativa com a Universidade, recomendo sempre esse artigo do meu parça Luis Roberto Amabile. Aliás, para quem vai estar na Bienal de Pernambuco, tá rolando o I Primeiro Seminário Internacional de Escrita Criativa.

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Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva

Escritor, jornalista, redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP. Autor de Pesadelo Tropical (Aboio, 2023). www.marcosviniciusalmeida.com