Ruína das ideias

Ou o cemitério das intuições perdidas

Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva
2 min readNov 9, 2017

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(meu cemitério de intuições perdidas)

Cadernos. Notas adesivas. Lembretes. Quando se está escrevendo, é necessário aceitar como hóspede uma paranoia: as melhores ideias, traiçoeiras que só, estão nos armando uma tocaia. Escondidas nas sombras, vão nos pegar desarmados, sem lápis e papel, nos momentos de maior fragilidade. É um conselho comum: carregue sempre lápis e papel, anote tudo. Não se deixe trair pelas traições da memória.

Mas a verdade é que as notas, lembretes e cadernos são ainda mais traiçoeiros. Pois a maioria daqueles pensamentos súbitos, depositados nessas notas, e que pareciam geniais na hora que apareceram, têm validade curta: não fazem mais sentido nenhum agora.

Sua verdade é volátil. Só vale naquele mínimo relampejar da intuição. Depois de um tempo, apanha-se um desses papeis e não se consegue apreender qualquer significado: enigmas, jogos antigos, charadas de esfinges, palavras cruzadas modo hard sem caderno de solução.

Ideias mortas. Sem elas, resta apenas o próprio traçado do lápis, seu desenho, seu caminho titubeante no papel. Essa letra andarilha é um último vestígio das sombras de uma boa intuição. Tremida e oscilante, o desenho dessa letra é um rastro precário, quase apagado: algum dia uma ideia genial passou por ali. Passou. Então agora resta seguir seu contorno, refazer seu caminho. O olho investiga sua forma, e também oscila, mas agora sem qualquer pretensão de alcançar um sentido, uma ideia por trás da letra.

Aqui é possível encontrar um pouco de beleza nesse traço inquieto, nessa escrita trêmula e órfã de ideia, órfã de qualquer solução. Essa letra reencena o gesto sempre fracassado de entendimento: guardar tudo dentro da letra. Um gesto do corpo, gravado precariamente nesses traços serpenteando o papel.

É apenas resto, sobra, e mais nada: restos de um mapa perdido de uma terra que nunca existiu. Como se o lápis, à maneira da agulha de um sismógrafo, tivesse um dia trepidado sob as violentas ondas de choque da angústia e febre do pensamento apaixonado. As ideias morreram, é verdade. Mas o eco da sua febre e paixão sobrevive, pura ruína, encarcerada e perdida para sempre no rastro tremido da letra.

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Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva

Escritor, jornalista, redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP. Autor de Pesadelo Tropical (Aboio, 2023). www.marcosviniciusalmeida.com