Segunda-feira

Tá tranquilo, tá favorável

Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva
4 min readFeb 2, 2016

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Depois de um dezembro caótico e um janeiro mais ou menos sabático, organizei a escravinha, separei os livros e começo a me preparar pro início das aulas.

Vou cursar três disciplinas, duas delas concentras: ou seja — terei aulas todos os dias, das 8h às17h, durante o mês de março. Depois uma disciplina às terças, meio período, durante o resto do semestre. Além disso, me inscrevi num curso de escrita (ainda não sei se vou ser selecionado), cujos encontros são quinta à noite e sábado de manhã.

Adeus, xbox.

Nessa disciplina sobre o romance brasileiro, além da carga de teoria, há uma lista de dez romances pra ler, antes de começar as aulas. Já li dois que estão ali, ao longo da vida: O cortiço e Dom Casmurro. Há outros que sempre estiveram na estante para ler em algum momento: O sol se põe em São Paulo, do Bernardo Carvalho, que comprei numa daquelas visitas despretensiosas a Livraria Cultura, e os livros do Milton Hatoum, que tenho no kindle, Dois Irmãos e Órfãos do Eldorado. Também o Ruffato, Eles eram muitos cavalos.

Mas o que me deixa de cabelo arrepiado é ter que ler Iracema, a essa altura da vida.

“Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira”.

Tudo bem, lá vamos nós.

Acho que Macunaíma e Tenda dos Milagres, vá lá, não é bem o que eu gostaria de ler agora (eu gostaria de ler agora Elena Ferrante, Javier Marías e terminar a leitura dessa nova coletânea de contos da Alice Munro, Falsos Segredos), mas Iracema vai ser mesmo um exercício de contemplação budista. Ler por obrigação sempre foi um grande desafio para mim.

Mas tá tranquilo, tá favorável.

Agora é organizar as coisas de modo que SOBRE tempo pra escrever ficção.

‘The Bed Time Story’, 1878. Seymour Joseph Guy, (1824–1910).

Os contos de fadas são mais antigos do que se imaginava, segundo uma pesquisa divulgada recentemente. Podem ser mais remotos até que as narrativas mitológicas: “Algumas dessas histórias são muitos mais antigas do que os primeiros registros literários, e até mais do que a mitologia clássica — algumas versões dessas histórias aparecem em textos gregos e latinos, mas nossas descobertas sugerem que são bem mais antigas do que isso.”

Narrativas que são mais antigas que as línguas mais antigas. Do que qualquer registro escrito, sistematização de um idioma. É algo sensacional imaginar uma história atravessando séculos e séculos, sustentando-se apenas por si mesma, pela potência narrativa. Pela necessidade de narrar e ouvir histórias ao redor de uma fogueira.

Acho que todo mundo que lê um conto qualquer da Alice Munro sempre fica de queixo caído. Como essa senhora do interiorzão do Canadá consegue construir narrativas tão magistrais? Eu nunca me canso de me espantar com os contos dela. O último eu li, Arrebatada, que abre o livro Falsos Segredos, é uma história de uma bibliotecária que se corresponde com um soldado que está na frente de batalha na Europa. A coisa toda é menos um conto e mais um romance concentrado em 58 páginas de prosa narrativa do mais grosso calibre. É realmente arrebatador.

“As obras primas”, escreveu Flaubert, “são como os grandes animais. Parecem tranquilas.”

“De fato”, completaria Camus, “mas em seu sangue sempre correm estranhos e jovens ardores”.

Como meu pai mora em Minas, e a gente tem ido menos do que gostaria visitá-lo, tenho cultivado o hábito de inventar histórias para o Joaquim usando meu pai como personagem. O Joaquim adora. A trama gira em torno de uma ventania que surge do nada e joga o chapéu do meu pai no rio. O Joaquim já decorou parte da história. Curioso que além do “uma vez” e do vovô Bié, o Joaquim fixou rapidamente o conectivo: “e aí”.

Dia desses, quando foi conhecer o priminho Heitor, de três meses, o Joaquim foi logo dizendo: “Uma vez, o vovô Bié. Um vento. No rio”. Nem sei o que dizer.

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Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva

Escritor, jornalista, redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP. Autor de Pesadelo Tropical (Aboio, 2023). www.marcosviniciusalmeida.com