Arquivo pessoal. Estrada de São Bento Abade, Sul de Minas, julho de 2017.

Sonhos, sinais e intuição

A linguagem que caminha nas sombras

Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva
Published in
5 min readAug 14, 2017

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1.

O que há de mais de terrível em Todos os belos cavalos, de Cormac McCarthy (Afaguarra, 2017), é todo aquele período de silêncio, durante ausência do garoto. Achamos, e mesmo desejamos, junto com as personagens, que tudo fique bem. E que Deus, claro, nunca deixaria algo de ruim acontecer com um menino — quase uma criança — como aquele. O mundo não pode ser um lugar tão árido, tão ruim assim. Mas há essa sabedoria primitiva, arcaica, essa sabedoria que antecede qualquer raciocínio, essa suspeita, essa intuição incontornável: a crueldade e o mal são na verdade a lógica que prevalece. Tanto no mundo natural, como no mundo dos homens.

2.

John Grady e seu companheiro suspeitam disso. Eles dizem que, quando alguns pastores quiseram comprar o garoto, talvez para transformá-lo numa espécie de efebo, num escravo sexual, isso foi uma espécie de sinal, um sinal de que as coisas terminariam de forma trágica, no fim das contas (p. 77). Essa intuição precede o momento em que os dois estão acampados, sozinhos no deserto mexicano, rodeados por coiotes ferozes. Enquanto a fogueira está forte e imponente, os animais se mantêm afastados, escondidos sob as sombras. Mas tão logo os jovens aventureiros dormem, e o fogo perde força, os coiotes já estão ali, próximos, farejando.

À noite os coiotes acordaram-nos e eles ficaram deitados no escuro ouvindo-os reunidos em torno da carcaça do gamo, brigando e bufando feito gatos.

Quero que você escute essa porra de barulho, disse Rawlins.

Levantou-se e tirou um tição da fogueira e gritou com eles e jogou o pau. Eles se calaram. Ele refez a fogueira e girou a carne nas varas de cedro. Quando voltou para as mantas eles tinham recomeçado (p. 91).

O bem é do tamanho de nossas forças, da dimensão de nosso coração: precário e provisório. E o mal está sempre à espreita, pronto a uma nova investida. Vamos sempre vacilar. E quando vacilarmos, será fatal.

3.

A imagem dessa chama que se mantém acesa contra uma cortina espessa de trevas é repetida e reiterada em A estrada (Alfaguarra, 2009). Se o mal é o estado natural, a única garantia de bem é esse bem precário, provisório, transmitido (para lembrar uma expressão benjaminiana) de geração em geração, pelos homens. Mas no contexto do livro, e também no nosso, talvez a maior pergunta a ser feita seja a seguinte: por que ainda guardar essa chama de humanidade, ou a transmissão dessa chama de uma geração para outra, em um universo onde qualquer horizonte de moralidade desapareceu? Pra resistir. Resistir contra o mal como a chama precária de uma vela contra as trevas da noite. Embora nalgumas vezes sejamos nós mesmos essas trevas.

4.

Há aquela famosa passagem do Faulkner, meio apócrifa, citada pelo Javier Marias, de que a literatura é como uma vela no interior da noite. Não propriamente ilumina — a escuridão é sempre maior — mas como uma vela, a literatura dá a dimensão dessa imensa escuridão ao nosso redor. McCarthy, melhor que ninguém, parece caminhar como um peregrino cego nas fronteiras mais distantes das trevas.

5.

McCarthy publicou um artigo sobre filosofia da linguagem, há alguns meses, onde defende a ideia de que o inconsciente antecede à linguagem, pois a linguagem é algo relativamente recente para o nosso cérebro. Segundo o artigo, as grandes questões não são resolvidas, ou pelo menos sondadas, ao nível da linguagem (articulada, do raciocínio), mas num nível mais profundo e primitivo, tão antigo como o próprio mundo. É aí que opera a literatura, a intuição e a memória: estabelecendo semelhanças — ou as descobrindo — entre coisas aparentemente sem qualquer ligação. Algo próximo, creio, daquele engenhoso texto de Benjamin: A doutrina das semelhanças.

6.

No dia 27 de novembro de 1964, o jovem Charles McCarthy decidiu escrever sobre um sonho que há muito tempo o obcecava. Era assim: ele se encontrava no meio de uma multidão repleta de cegos maltrapilhos, todos à espera de um eclipse do Sol. Eis que surgiu, diante deles, numa espécie de estrado, ninguém menos que Jesus Cristo, que ergueu os braços, pediu silêncio e anunciou que, logo depois que o Sol regressasse, os cegos que estavam ali recuperariam imediatamente a visão. No meio da turba, levantou-se o próprio McCarthy, desesperado; ele perguntou a Cristo: “Cura-me! Podes curar-me? Então — e eu?”. Jesus respondeu que sim, iria curá-lo, e apagou a luz do sol com apenas um gesto. A multidão esperou por vários minutos enquanto as trevas dominavam tudo. Quando perceberam que o Sol não voltaria, os cegos maltrapilhos se reuniriam, cercaram McCarthy e o lincharam sem nenhuma misericórdia.

Martim Vasques da Cunha, no ensaio A visão do abandono.

7.

O mito do Éden deve ser interpretado para além da questão do pecado original. Deve ser lido como uma espécie de explicação antropológica, arcaica, de quando nós, meio símios, meio homens, abandonamos a natureza — embora ainda subsista essa raiz forte, essa natureza mais primitiva, em tensão constante com a dimensão da cultura.

Pois não é outra coisa, senão o abandono, esse sentimento de fundo que guiou nossos ancestrais mais arcaicos e forjou nossas almas: peixes abandonando os oceanos pré-jurássicos, répteis abandonando à terra, macacos abandonando às árvores, tribos nômades abandonando suas terras a cada intempérie — e depois os próprios nômades abandonando seu nomadismo. A criança que abandona o útero, o pai que abandona à casa. As pessoas que amamos abandonando à vida, e nos deixando aqui sozinhos, até chegar a hora que nosso frágil corpo vai vacilar, nos deixar na mão, nos abandonar — e nós também vamos abandonar isso tudo: e desaparecer no nada.

Tive uma série de pesadelos essa noite. Pesadelos terríveis, com facas e crimes, mas principalmente com abandono e traição. Acordei desolado. Um pouco disso vem da leitura de McCarthy, mas também de coisas da vida, coisas que não consigo entender, ou elaborar, e esses sonhos cifrados, com seus enredos cheios de oráculos, parecem querer me dizer alguma coisa. Alguma coisa que, talvez, eu nunca seja capaz de entender. Pois antes de se falar de interpretação de sonhos, como também de livros, talvez seja necessário reconhecê-los como enigmas. Enigmas que vão nos perseguir — nos perseguir e torturar — pelo resto da vida.

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Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva

Escritor, jornalista, redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP. Autor de Pesadelo Tropical (Aboio, 2023). www.marcosviniciusalmeida.com