W. G. Sebald

Os fantasmas de Austerlitz — parte I

Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva
4 min readNov 29, 2017

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Na edição brasileira, p. 131 e 134, respectivamente.

“Ao contrário de Elias, que sempre relacionava doença e morte com provação, castigo justo e culpa, Evan contava histórias de mortos fulminados pelo destino de forma extemporânea, que sabiam ter sido fraudados da parte que lhes cabia e tentavam regressar à vida” (p. 57).

“Nós tentamos reproduzir a realidade, mas por mais que nos empenhemos, mais se impõem a nós as imagens batidas que compõem o espetáculo da história: o tamborileiro caído, o soldado de infantaria que acaba de apunhalar outro, o olho de um cavalo que salta da órbita, o imperador invulnerável cercado pelos seus generais, em meio ao turbilhão da batalha que se congela num átimo. Nossa relação com a história, esta era a tese de Hilary, era uma relação com imagens já pre-definidas, impressas no recôndito dos nossos cérebros, imagens que continuamos a mirar enquanto a verdade reside em outra parte, em algum lugar remoto que ninguém ainda descobriu” (p. 75).

“O tempo, disse Austerlitz no observatório astronômico de Greenwich, era de todas as nossas invenções a mais artificial e, por estar vinculada aos planetas que giram em torno do próprio eixo, não menos arbitrária do que seria, digamos, um cálculo baseado no crescimento das árvores ou na duração necessária para uma pedra calcária se desintegrar, sem falar que o dia solar pelo qual nos orientamos não fornece uma medida precisa, de modo que para calcular o tempo temos de inventar um sol imaginário médio, cuja velocidade de movimento não varia e que não se inclina para o equador em sua órbita (…) Os mortos estão fora do tempo, os moribundos e todos os doentes nos leitos das suas casas ou dos hospitais, e não só ele, pois um tanto de infelicidade pessoal já basta para nós cortar de todo o passado e todo futuro” (p. 102–103).

“Asgnab retorquiu que em 1941, quando da requisição da casa, ele próprio escondera as portas do salão de bilhar e também dos quartos das crianças no último andar, tapando-as com paredes falsas, quando no outono de 1951 ou 1952 foram postas abaixo essas divisórias, diante das quais haviam sido empurrados grandes armários de roupas, e ele tornou a pisar no quarto de criança pela primeira vez em dez anos, então, disse Ashman, faltou pouco para ele não perder de vez a razão. À simples visão do trenzinho de ferro com os vagões da Great Western Railway e da arca de Noé, da qual espreitavam os pares de valentes animais salvos do Dilúvio, foi como se o abismo do tempo se abrisse aos seus pés, e quando ele correu os dedos pela longa fileira de talhos que, aos oito anos de idade, ele gravara com raiva surda na beirada da mesinha-de-cabeceira às véspera de ser enviado à Preparatory School, lembrava-se Ashaman, aquela mesma raiva subiu-lhe novamente e, antes de se dar conta do que estava fazendo, viu-se lá fora no pátio dos fundos, atirando várias vezes com sua espingarda na torrezinha do relógio da cocheira, sendo que ainda hoje as marcas podem ser vistas no mostrador” (p. 110).

“Do mosteiro fora de Bishopsgate também fazia parte o hospital para alienados e pessoas indigentes que passou para a história com o nome de Bedlam. Sempre que encontrava na estação, disse Austerlitz, eu tentava imaginar de forma quase obsessiva onde ficava a cela dos reclusos naquele espaço mais tarde cortado por outros muros e que agora passava por nova reforma, e muitas vezes me perguntei se a dor e o sofrimento ali acumulados ao longo dos séculos realmente se dissiparam, se ainda hoje, como às vezes eu supunha ao sentir um golpe de ar frio na testa, eles não cruzava o nosso caminho pelo pátios e nas escadas. E eu também imaginava pode ver os campos de branqueamento que se alongavam a oeste de Bedlam, via os panos de linho branco estendidos sobre a grama verde e as pequenas figuras dos tecelões e das lavadeiras, e para além dos campos de branqueamento eu via os locais onde os mortos eram sepultados desde que o pátio das igrejas de Londres não foram mais capazes de contê-los. Quando lhes faltava espaço, os mortos, assim como os vivos, mudam-se para regiões menos densamente povoadas, onde podem encontrar a sua paz a uma distância conveniente uns dos outros. Mas há sempre os recém-chegados, em uma sequência ininterrupta, e no final, para abrigá-los quando tudo já está ocupado, abrem-se covas sobre covas, até que em todo o cemitério as ossadas jazem em mistura desordenada” (p. 130–131).

“Mas para mim, disse Austerlitz, era como se naquela época os mortos voltassem do seu exílio e enchessem a penumbra ao meu redor com o seu vaivém peculiarmente lento e incessante” (p. 133)

W. G. Sebald, Austerlitz (Companhia das Letras, 2008)

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Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva

Escritor, jornalista, redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP. Autor de Pesadelo Tropical (Aboio, 2023). www.marcosviniciusalmeida.com